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SURDOCEGUEIRA NAS ARTES DA CENA: SEU SOUSA – CONSTRUINDO SABERES.

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Tecnologia Assistiva – Podcast do Artigo
Locução – Lunna Mara
SEU SOUSA: CONSTRUINDO SABERES: Parte I
SEU SOUSA: CONSTRUINDO SABERES: Parte II

Clarissa Barros: Artista, professora e pesquisadora com experiência nas linguagens musical e teatral. Trabalha com projetos de arte e cultura, formação de professores e desenvolvimento humano em comunidades. Mestranda em Artes da Cena, cuja pesquisa tem o foco na deficiência em cena. Desenvolveu diversos projetos de espetáculos teatrais envolvendo criação coletiva, jogos teatrais e improvisação. Atua com diversas metodologias de educação musical, incluindo as práticas de música circular, oficina rítmica e música de base Antroposófica. Coordenadora e responsável pelo Projeto De Olho no Lance, que realiza saraus de arte inclusiva e promove o protagonismo artístico de deficientes visuais no DF por meio dos grupos: Coral Olhos do Coração (regente), Grupo Teatral No Escuro (direção teatral), Grupo Poesia para Quem Ama e Consort de Flautas (professora).Audiodescritora, com especialização em áudio descrição de espetáculos teatrais, performance, circo e dança.Também participa do cenário cultural da cidade com apresentações musicais em eventos diversos, atuando como artista (cantora, flautista e contação de histórias) no coletivo CANTANTE, especializado em festas infantis. Além disso, desenvolve junto aos artistas brasilienses o serviço de Consultoria em Tecnologia Assistiva (Deficiência Visual) e realiza áudiodescrição em espetáculos de dança e teatro. Professora de Música e Artes Cênicas, com ampla atuação tanto na formação de professores quanto em projetos culturais e pesquisa.Atuou por dois anos no ensino superior, no Centro Universitário do Distrito Federal – UDF,  junto aos cursos de Pedagogia e Publicidade. Foi professora de Música e Teatro para pessoas com deficiência visual no CEEDV (Centro de Ensino Especial para Deficientes Visuais) na SEE-DF entre 2015 e 2020.Sua experiência anterior foi como professora do CEP-EMB Escola de Música de Brasília em diversos núcleos, auxiliando na organização de disciplinas e itinerários formativos tanto na musicalização infanto-juvenil quanto nos núcleos de matérias teóricas na música popular e erudita.Também trabalhou por cinco anos como Monitora no programa Sopronovo Yamaha Musical, ministrando cursos de Musicalização através da Flauta Doce para arte educadores em todo o Brasil. Ainda atuou como coordenadora do Curso de Linguagem Musical do Projeto Música para Crianças, da Universidade de Brasília, onde também exerceu a função de professora do curso de Flauta Doce do mesmo projeto.

RESUMO

O presente artigo busca discutir as possibilidades de construção de uma prática dialética na construção de aprendizagens em teatro educação. Participaram da atividade um grupo de estudantes com deficiência visual e surdocegos, todos matriculados na disciplina do currículo complementar em Artes Cênicas, em uma escola pública do Distrito Federal. O diário de campo foi o instrumento utilizado no processo de coleta de dados. O procedimento consistiu na escuta ativa das sugestões e forma de condução do trabalho da professora de artes cênicas. A metodologia utilizada foi a pesquisa autobiográfica, de cunho qualitativo, apresentando a sistematização dos processos criativos e de seus resultados estéticos. Este estudo de caso propõe uma reflexão a partir da experiência prática, sobre os elementos do fazer artístico e pedagógico que envolvem criação, contextualização e fruição. Os resultados evidenciaram a importância de se partir da experiência prática e que do encontro pedagógico entre uma professora de teatro e um estudante surdocego, são construídas as possibilidades de construção do conhecimento dentro da prática docente, expandindo saberes para além da sala de aula.

 

Palavras-Chave: Surdocegueira. Teatro Educação. Aprendizagem. Acessibilidade Cultural.   Acessibilidade artística.


1. INTRODUÇÃO

O teatro, em primeira instância, é um encontro do ator consigo mesmo. Quando atua, quando joga, o ator encontra-se (ou re-encontra-se) com outras realidades internas, imaginárias, fictícias, teatrais. Ao adentrar este espaço corporalmente, ele encontra a si mesmo. Não numa busca espiritual, o que não deixa de ser possível. Mas num confronto sensório-motor e psíquico, no qual a razão e emoção atuam em conjunto para a criação artística, uma teatralização de uma realidade outra, diferente da realidade vivida no espaço cotidiano.

“A essência do teatro é um encontro. O homem realiza um ato de auto-revelação, é por assim dizer: o que estabelece contato consigo mesmo. Quer dizer, um extremo confronto, sincero, disciplinado, preciso e total – não apenas um confronto com seus pensamentos, mas um encontro que envolve todo o seu ser, desde os seus instintos e seu inconsciente até o seu estado mais lúcido.” (GROTOWSKI, 1992, p.48)

Nesse contexto, o teatro não é tão somente auto-encontro. Para que a atividade teatral aconteça, é preciso que exista o “outro”. É preciso que haja jogo, que exista alguém que assiste, que observa, mesmo que o outro também participe. Então, o teatro é também um encontro com o outro. E esse encontro com o outro gera aprendizado. Neste encontro, saberes são desenvolvidos, experiências são trocadas e ambos crescem. Este encontro também acontece na sala de aula. Como bem lembra Paulo Freire (2004) ao discutir os processos de ensino e aprendizagem em uma perspectiva dialógica:

(…) “ensinar não é transferir conhecimentos, conteúdos nem formar é ação pela qual um sujeito criador dá forma, estilo ou alma a um corpo indeciso e acomodado. Não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto, um do outro. Quem ensina aprende e quem aprende ensina ao aprender.” (FREIRE, 2004, p.23)

Portanto, toda sala de aula é um espaço para o jogo. O jogo do ensinar-aprender. Mas para que uma horizontalização da aprendizagem aconteça, é necessário abandonar qualquer processo de hierarquização de saberes. É preciso desenvolver uma escuta empática e amorosa. É necessária a flexibilização do tempo para a aprendizagem porque cada ser humano é único em toda sua complexidade. E como educadores precisamos construir constructos de aprendizagem, respeitando processos de desenvolvimento pessoais e coletivos, processos que se aplicam a todas as pessoas independente da condição sensorial. No caso desse relato de experiência, levamos em consideração o perfil dos estudantes participantes, alguns com baixa visão, outros cegos, outros surdocegos, cada um com uma história de constituição pessoal singular e que deve ser considerada. Assim, é importante escutar o outro nas suas demandas e necessidades de acesso ao contexto das atividades da área de Artes Cênicas.

Concordamos com Paulo Freire quando afirma que “Escutar, no sentido aqui discutido, significa a disponibilidade permanente por parte do sujeito que escuta para a abertura à fala do outro, ao gesto do outro, às diferenças do outro.” (FREIRE, 2004, p. 119). É necessário nos colocarmos a nós mesmos diante de cada estudante, numa postura de escuta empática, permitindo surgir o silêncio necessário para que as profundidades possam emergir em necessidades, desejos, anseios e habilidades criativas. Qual a necessidade de hierarquização dos saberes, dos conteúdos, das áreas, dos currículos? Torna-se necessário que os educadores permitam que surjam perguntas. Precisamos dar espaço/tempo/permissão para perguntar, para processar a discussão e reelaborar posturas, o respeito ao tempo do outro é algo precioso na arte de ensinar e aprender… é na dinâmica desse contexto que  nos tornamos destemidos diante do novo, do desconhecido, daquilo que não se sabe. Processo em que precisamos estar abertos e disponíveis ao diálogo, ao debate, permitir que o contraditório nos transforme e enriqueça.

Assim sendo, enquanto professora de teatro para alunos com deficiência sensorial, reconheço que toda transformação é interna. Então, mergulho dentro de mim para, no encontro com o outro (estudante) eu consiga ao menos vislumbrar possibilidades de trans-forma-ação. Explico-me: na auto-observação exercito minha própria capacidade de mudar, modificar meu modo de agir, de atuar, numa modelagem e remodelagem da organização do tempo e espaço, técnicas e recursos, estratégias e planejamentos. Partindo da complexidade de ser humano, preciso compreender meus estudantes em seus projetos de vida=caminhos de aprendizagem=possibilidades dialógicas de transformação criativa. As experimentações criativas surgem a partir dos interesses e necessidades de cada estudante. A partir da história que eles querem contar. E nesse intenso processo de pesquisar, criar, descobrir e intervir, preciso criar espaços para a nutrição estética dos estudantes. Existe uma necessidade de alimentá-los com arte, oferecer a eles também experiências de fruição.

É necessário resgatar que ao trabalhar com estudantes com deficiência sensorial, o profissional da educação necessita ter claro o que Barba (2012) destaca: “Se um dos nossos sentidos sofre uma mutilação, os outros são aguçados; o ouvido de um cego é particularmente sensível, e para um surdo os mínimos detalhes visíveis são vívidos e indeléveis” (BARBA, 2012, p.16). Mas, se numa pessoa cega, a comunicação se dá principalmente pela via auditiva, usando-se sons e palavras, e, numa pessoa surda, a comunicação se dá principalmente pela visualidade, usando-se gestos e imagens, como deveria acontecer a comunicação entre professora e estudante surdocego? Esta foi a primeira pergunta que moveu nossos encontros e todo o processo de ensino-aprendizagem que se desenvolveu a partir de então. O toque, a proximidade intensa, sentar-nos lado a lado, muito próximos. Conversar com as mãos entrelaçadas. Falar tateando suavemente um ao outro, numa sutil confirmação da presença, do entendimento, do momento certo de pausar a reflexão e alternar o domínio da fala. Cader-Nascimento (2021) destaca a importância de romper com o isolamento do  estudante  surdocego,  observar  a  singularidade de  suas  demandas  pessoais  de acessibilidade, estabelecendo parcerias de comunicação e de ampliação do repertório de aprendizagem e de contato com o mundo das coisas, das ações e situações. Esse foi um desafio vivenciado na prática cotidiana da sala de aula, aspecto abordado de forma profunda por Porto (2005, p. 24), no qual afirma que diante dos obstáculos:

“Surge a necessidade de entender sob quais parâmetros este ser humano vê o mundo não com os olhos, mas vê o mundo pelos sons, pelo tato, pelo olfato, pelo paladar, enfim, pelo corpo, é denominado cego. Este ponto de partida me faz refletir com mais cautela sobre esta população que vem sendo caracterizada e denominada a partir do potencial funcional do órgão olho, demonstrando como este ser é prejudicado na sua capacidade de olhar e ver o mundo a partir das imagens quando apresenta alguma alteração funcional.” (PORTO, 2005, p. 24)

Portanto, seguindo esse raciocínio, refletir sobre nossa própria experiência enquanto professora de artes cênicas e música de um grupo de estudantes com deficiência visual e surdocegos.

Nosso objetivo consistiu em descrever as experiências vivenciadas no contexto da sala de aula de artes cênicas com estudantes com deficiência sensorial. Iremos evidenciar o protagonismo de um aluno em particular, Seu Sousa, que redirecionou a dinâmica viva das atividades desenvolvidas. Ressaltamos que não iremos nos deter ao engessamento metodológico, mas buscaremos a fluidez da descrição das experiências e dos processos de aprendizagem e construção do Ser Professor no contexto da sala de aula.

2. METODOLOGIA
2.1 SOBRE O ALUNO QUE ENSINA E O PROFESSOR QUE APRENDE   

O presente relato de experiência, de cunho qualitativo, estrutura-se conforme uma pesquisa na prática artística, enquanto pesquisa autobiográfica de cunho etnográfico e de crítica estética. Para fundamentar os processos de sistematização do conhecimento oriundos da prática artística e sistematizados conforme os procedimentos específicos da linguagem teatral, escolhemos embasamento na metodologia utilizada comumente pelas pesquisas auto-etnográficas, mais especificamente nas pesquisas de processos criativos nas artes, métodos de pesquisa também denominados como: estudo prático, ou  estudo de conhecimentos práticos (Elbaz, 1983), conhecimentos em ação (Clandinin, 1985), conhecimentos artesanais (Leinhardt, 1990), metáforas praticantes (Munby, 1986), teorias em ação (Schön, 1983). A estrutura narrativa do texto sistematiza, de forma cronológica, os momentos de ensino- aprendizagem vivenciados pela professora e seu estudante a cada novo processo criativo instaurado.

Participaram desse trabalho uma professora regular da SEDF, graduada em Educação Artística, nas áreas de Música e Artes Cênicas, com formação em pedagogia Waldorf, música de base antroposófica, especialização em Educação Musical e Musicoterapia, com quase 20 anos de experiência em sala de aula e seus estudantes. O contexto no qual a pesquisa se insere é o de um centro de ensino especial, voltado exclusivamente para o atendimento de pessoas com deficiência visual – CEEDV. A professora atuava no programa de atendimento interdisciplinar – PAI, na disciplina de Artes Cênicas, com uma turma de aproximadamente 30 estudantes vinculados ao programa de reabilitação na área da deficiência visual. A faixa etária destes estudantes é bastante variada, pois os atendimentos incluem crianças, adolescentes e idosos, todos com deficiência visual, inseridos na mesma turma, que abrange pessoas com cegueira congênita, cegueira adquirida, mas também pessoas com baixa visão e pessoas surdocegas. A turma é composta por pessoas de diversas faixas etárias e níveis de escolarização, porque acolhe diversas pessoas ao longo de toda a vida. Podemos ilustrar a classe multisseriada com diversos casos, a exemplo dos estudantes com baixa visão que retornam para os atendimentos, após a terminalidade dos mesmos, em vários momentos de suas vidas, pois necessitam de novo processo de habilitação diante da perda visual, conforme as doenças degenerativas que causaram sua perda visual evoluem ou se complexificam. Outros casos que ilustram a complexidade deste contexto é o numeroso grupo de idosos participantes, cuja perda visual é consequência dos processos naturais de envelhecimento.

O presente relato de experiência enfatiza um estudante surdocego, identificado aqui como Seu Sousa. Portanto, escrevo este artigo para contar sobre um encontro que marcou profundamente a minha vida enquanto arte educadora. Comumente passamos nossa vida acadêmica referenciando-nos pelos mestres que influenciaram nossas decisões pedagógicas, os autores que nos referendam o pensar, os artistas que nos exemplificam modos de agir e fazer artes. E eu escolho, neste momento, discorrer sobre um aluno, um ser humano que impactou profundamente a minha vida de professora, de artista, de mulher e mãe. Um homem que chegaria ao auge dos seus oitenta anos de idade, se não fosse vítima da COVID-19. Essa doença que assola nossas vidas, que roubou de nós a companhia de seres queridos, que nos afastou uns dos outros e que tirou tantas entidades, cujos nomes fazem parte da trajetória de nossas famílias com seus entes amados, outras que fazem parte da história da humanidade, marcando gerações com pensamento, cultura, arte, história.

E é, no momento da mais profunda dor, com a perda deste estudante querido, deste marido amado, deste colega sincero e fundamental para mover vidas em aprendizado, que desejo demarcar como ponto de mutação na transformação didática e metodológica. Transformação que se nutre em outros nomes, recebe influência de pedagogos, se estrutura conforme as concepções artísticas de tantos mestres que me forjaram artista e pesquisadora, mas que se molda e transforma no profundo encontro com este outro, que se tornou íntimo e complexo. E, na complexidade do encontro, que transforma  vida  em  artes,  criou raízes no pensamento  da  comunidade  escolar, forjou vínculos, gerou amizades. Nesta caminhada, na qual a finitude da vida impera, o Seu Sousa encenou peças, declamou poesias, compôs uma canção e orquestrou espetáculos que tiveram profundo impacto num grupo mais ou menos robusto de pessoas, entre seus pares, os colegas das turmas de Artes Cênicas e Música. Assim,  ressoou sua presença nas ações reflexas de professores, colegas e público que o assistiram e tantas outras pessoas. Insistiu até conseguir fazer ecoar seus versos roucos em canções nas pessoas mais íntimas, distantes do ambiente escolar, mas as que provavelmente mais aprenderam e conviveram em sua curta existência nesta terra, sua esposa e seus filhos.

Este homem grandioso com um sorriso de menino chamava-se Francisco Sousa, apelidado carinhosamente de “seu Sôza”, e tive a honra grandiosa de ser sua professora por alguns anos. Ele foi filho, marido, pai, empregado e empresário. E, além de toda a historicidade de sua vida e percursos de desenvolvimento, este homem se tornou cego e, depois, deficiente auditivo, surdez severa, fazia uso de aparelho de amplificação sonora individual – AASI. Não nos importa, neste momento, investigar a ordem em que seus sentidos tornaram-se limitados, pois estas deficiências tornam-se características no convívio diário com a sua tremenda força criativa e imperativa de viver e atuar no mundo. Surdocego1 é o conceito mais exato que define a maneira peculiar sob a qual o Seu Sousa (seu sôza) habitava nossa escola e permeava nossas vidas com sua presença transformadora.


1 Essa doença tem assolado vidas e afastado pessoas. Principalmente isolou os idosos, que são os guardiões da memória e responsáveis pela transmissão da cultura entre gerações. Ao longo da pandemia, inclusive perdemos pessoas que se tornaram quase que “patrimônios culturais”. Essas perdas todas estão se dando nas esferas de nossas famílias com seus entes amados, e em outras esferas amplas, com indivíduos que ativamente tiveram destaque na história.

3.RESULTADOS
3.1 NO PRINCÍPIO ERA O VERBO

Os resultados serão apresentados de acordo com a interação estabelecida com Seu Sousa e os impactos de suas posições no direcionamento da dinâmica da sala de aula.

No primeiro dia de aula, ele chegou à sala primeiro que eu. Esta foi uma constante no nosso curto relacionamento professora-aluno. Ele se tornou uma presença que antecipava. Quando você recebe um estudante com mais de setenta anos de idade, que chega à sala de aula quinze minutos antes, você entra pela porta com reverência. Todo discurso freireano, sobre a dialética do ensino, que consumimos ao longo da academia, vem muito rapidamente à tona e ganha contornos de realidade. Professor, cujos domínios sobre a linguagem artística, conceitos e metodologias vão muito longe e compõem a estrutura básica do próprio pensamento e discurso, assim como eu, professora-pesquisadora. Todo esse conhecimento ao estar diante de outro ser humano que viveu uma vida muito maior que a sua em quantidade de anos vividos, cujos domínios você desconhece, passa como um filme pelos seus pensamentos. E  o  confronto  entre  professora-estudante, desde o momento em que abri a porta da sala de aula e vislumbrei aquele homem moreno, magro, cuja pele trazia tantas dobras e rugas, com a mão direita repousando sobre a fronte, uma mochila preta desbotada sobre as coxas, trajando jeans, sapatênis e uma camisa social de manga curta, olhando para o vazio. se estudante, com toda sua história, jogou diante de mim a possibilidade de viver. Esse estudante, com toda sua história, jogou diante de mim a possibilidade de viver na prática o que teorias fizeram em mim, discurso. Não houve sequer um leve movimento na minha entrada. Seu olhar permaneceu fixo, vazio, inerte. Sim. Ele figurava o aluno, esse ser sem luz, que é iluminado pelo professor. Cego, seus olhos não captaram a minha presença. E eu me movia. Coloquei pertences sobre a mesa: a bolsa, a garrafa d’água, cadernos e livros. Nada. Ele permanecia impassível diante de mim. Inerte. Silêncio. Eu disse-lhe desconcertada: Boa tarde! Não houve resposta. Ele coçou o rosto, ajeitou a mochila. Algum ruído mais forte vindo pela janela, talvez uma rajada de vento se movimentando pela sala quando eu fechei a porta, sem jeito, sem chão, sem palavras e, enfim: 

― “Professora, é a senhora que está entrando? ― Professora, boa tarde. Eu sou seu aluno. Vim pra ter aula de Artes Cênicas. A senhora é a professora Clarissa?”. Sim, eu era. E, só então, percebi que ele, em movimentos nervosos e instáveis, mexia impaciente no aparelho atrás das orelhas. Como tantos outros surdocegos, o aparelho fica desligado. Ele estava absorto num mundo interno que o outro não alcança. Este universo próprio no qual o EU existe sozinho. Longe da comunicação. Pura essência. Existência. Força de vida. E enquanto o aparelho auditivo era ligado para criar a ponte suave e tênue entre nós, eu descobria a verdade diante de mim: era preciso aprender desde o princípio. Estabelecer novas rotas de comunicação com vistas a possibilitar o acesso à informação. Desde o primeiro dia, percebi a necessidade da aproximação, da fala mais articulada e próxima, a necessidade do toque suave de mãos para marcar presença conjunta no mesmo espaço.

3.2 CONSTRUINDO SABERES

 

Vale salientar que no início surge um vazio na sala quando os olhares não se cruzam. Quando a frase precisa ser repetida em diferentes intensidades, alternando entonações e articulando cuidadosa e meticulosamente cada fonema. O caminho mais fácil, e inexoravelmente, instintivamente o tomamos, sobressaltados com a sua ineficácia, é o do “berro”. Você naturalmente se aproxima da pessoa idosa e fala mais forte, grita. Mas digo com sinceridade, baseada numa sabedoria que só a convivência proporciona ― não funciona. O Sr. Sousa me disse logo no primeiro contato, que ele escutava melhor de uma das orelhas, indicando que me sentasse sempre deste lado (pouco depois descobri que não era a orelha que melhor escutava, mas aquela que estava adaptada ao aparelho auditivo). E assim, sem a menor cerimônia, como lhe era bastante peculiar, tomou minhas mãos entre as suas, de maneira a me reconhecer como indivíduo e cumprimentar. E disse: “A senhora é magrinha, tem as mãos delicadas e os dedos longos…” Fiquei absolutamente deslumbrada com sua imensa capacidade de perceber realidades, de traduzir mundos, ser sensível e humanamente único, um mistério ― que como educadora e investigadora de gente ― queria desvendar.

Nossas aulas transcorreram assim, sem pressa, em longas conversas nas quais ele me relatava suas memórias e experiências de vida através das quais eu elaborava e re-elaborava minhas próprias formulações. No diálogo constante, buscava introduzir suave e lentamente alguns questionamentos sobre o que ele já sabia sobre teatro, arte e linguagem. Minha investigação inicial seguiu com diálogos mediados por toques, textos e trechos de canções, utilizadas para testar audição, memória e vivências artístico-culturais pregressas, até que após três ou quatro semanas, me dei por satisfeita daquela “entrevista biográfica” e conclui meu diagnóstico inicial sobre meu estudante.

 Estabelecemos nossas metas iniciais: respirar melhor para conseguir falar frases mais longas sem perder o fôlego; articular melhor a mandíbula para que suas palavras fossem mais bem compreendidas pela audiência; melhorar a postura sentado; descobrir para que servem as aulas de artes cênicas; incluir essas palavras esquisitas no nosso vocabulário, afinal, teatro era uma coisa que tinha lá na escola, mas não se sabia muito bem o que era ou sua serventia; e, claro, quem sabe, convencer aquele aluno a ficar em pé durante parte da aula e num próximo passo, colocar aquele corpo em movimento expressivo. Boal (2019) chama atenção para o papel do corpo humano no contexto do teatro, para esse autor:

“Podemos mesmo afirmar que a primeira palavra do vocabulário teatral é o corpo humano, principal fonte de som e movimento. Por isso, para que se possa dominar os meios de produção teatral, deve-se primeiramente conhecer o próprio corpo, para poder depois torná-lo mais expressivo.” (BOAL, 2019, p.134)

Começamos a praticar juntos, tateando cuidadosa e respeitosamente o corpo um do outro, exercícios de respiração, alongamentos dos membros superiores, práticas imaginativas e recitação de pequenos versos repetidos sem conseguir, inicialmente, descobrir mecanismos para associar à palavra inflexão, entonação e o ato de modular a fala. Todo este caminho de aprendizagem e memória transcorreu em meio a risadas gostosas e confissões secretas (das aspirações dos filhos, da convivência marital, do empreendimento familiar em processo). E eis que um dia, seguindo meu planejamento articulado de situações de aprendizagem propostas, estruturadas e organizadas em sequências, que a cada encontro eram continuamente avaliadas e replanejadas, buscando desenvolver um método comunicativo eficaz, trouxemos à baila dos encontros uma temática do acaso: pássaros.

Acontece que o Sousa descobriu o coral formado pelos colegas e começou a frequentar os ensaios do grupo. Nos atendimentos do currículo complementar, na mesma instituição na área de comunicação alternativa junto à professora Fatima Cader-Nascimento, chamados Surdocegueira2, conheceu o amigo Paulo César, surdocego que já fazia parte de meu alunado há mais tempo, ator e cantor do Coral Olhos do Coração3, que o convidou a participar das práticas grupais que oferecemos à comunidade escolar. E a canção preferida do coral é uma cantiga folclórica cuja frase ‘passarinho canta’ é repetida como jargão em cânone. E meu estudante precisou, inicialmente, de ajuda para compreender o que era dito, e logo em seguida, trouxe como temática para nossas aulas individuais, uma poesia de Patativa do Assaré, em que o cordelista nordestino falava dos pássaros e louvava a criação divina.

E, só neste momento, eu verdadeiramente pude conhecer o Sousa. Quando sua memória de um verso aprendido na adolescência, declamado no auditório da cidade em que vivia no interior do nordeste, brotou na sala de aula. Esse momento ocorreu de forma natural durante um planejamento cuidadosamente concebido para que ele pudesse perceber as variações melódicas da canção praticada em coro. Somente nessa aula, eu pude finalmente encontrar este ser humano em sua verdade.


2 No ano letivo de 2016 o estudante assistiu a diversos saraus de arte inclusiva, chegando mesmo a observar de longe dois ou três ensaios do Coral Olhos do Coração, que aconteciam semanalmente na entrada da escola. Foi desta maneira que tomou conhecimento da chegada da professora na escola e solicitou o ingresso em sua turma para a coordenação pedagógica. Em 2017, participou da turma de Música no turno matutino, com dois atendimentos semanais coletivos, mas não conseguiu se adaptar, pois somente conseguiu a vaga no final do ano letivo e ficava muito confuso com os ensaios para a cantata de natal, com vários colegas em classe tocando instrumentos de percussão melódica. Os agudos do metalofone o incomodavam demasiadamente. Somente em 2018 ele conseguiu ingressar na turma de Artes Cênicas, com um atendimento individual e um atendimento em dupla. Mas logo no início do primeiro semestre os atendimentos foram reorganizados a meu pedido e o estudante conquistou dois atendimentos semanais individuais, além de participar dos ensaios do coral e eventualmente participar das criações cênicas de seus colegas. Em 2019 o estudante participou ativamente dos ensaios do Coral Olhos do Coração (dois atendimentos seguidos toda quarta-feira) e ainda manteve os atendimentos em dupla, com outro estudante surdocegos (Paulo César). Fez algumas incursões e participações no Grupo Teatral No Escuro em 2018/2019. Durante o seu último ano letivo ele era atendido por chamadas telefônicas semanais de aproximadamente uma hora e meia a duas horas, como consequência da pandemia passou a necessitar de ajuda familiar para ter contatos eventuais com os demais colegas em videoconferências previamente agendadas.

3 A surdocegueira é a combinação do comprometimento, em diferentes graus, da audição e visão. Desta forma, pessoas com surdez profunda ou severa associadas ao comprometimento da visão (baixa visão ou cegueira), ou seja, que tenham impossibilitado o uso dos sentidos à distância, são denominadas surdocegas. Mesmo que estas pessoas mantenham algum resquício tanto visual quanto auditivo. Na prática educacional o que importa é a funcionalidade efetiva da visão e audição, não somente o tipo e intensidade das perdas sofridas. E o que vai determinar pedagogicamente os caminhos possíveis para o atendimento educacional especializado, é a possibilidade de inclusão da pessoa surdocega em escola especial para cegos ou para surdos, ou ainda, na rede regular de ensino, com atendimento complementar. Mas conforme a autonomia da pessoa para se comunicar, no caso de já possuir um sistema de comunicação alternativa eficaz, ela necessitará ainda de atendimento especializado em surdocegueira.


Seguindo esse raciocínio, compreendemos que “teatro é a arte do encontro”. E através da linguagem teatral, o ser humano pode comunicar suas ideias e emoções. Isto acontece criando-se um espaço-tempo extra cotidiano, extraordinário, no qual o “se mágico” teatral torna-se verossímil. Imaginação se transforma em realidade. E no exercício de construir novos mundos possíveis, foi possível que a sala de aula se transformasse no continente adequado para que o estudante, impedido de concretizar a liberdade do mover-se e expressar-se livremente na vida, pudesse através da realidade imaginada nos ensaios, descobrir uma nova maneira de existir corporalmente.

E assim, o sonho da vida que a vida não permitiu, se transforma em teatro. E aquilo que a vida não permite concretizar torna-se por consequência o objeto de pesquisa artística. O objetivo maior da expressão teatral se transfigura numa superação de si mesmo. Um processo de autoencontro constante em que as limitações são sublimadas. Durante o espetáculo, Sousa enxerga e escuta como qualquer outra pessoa. A deficiência desaparece para que a arte seja instaurada. Uma nova realidade é possível de ser experimentada no palco. E a transmutação do corpo que, naquele momento se liberta da privação dos sentidos, ressoa também na plateia que o assiste.

Foi assim, que após a primeira apresentação pública do seu Sousa, ele conseguiu recuperar a matrícula em artes visuais e em braile. Através da auto afirmação de si mesmo enquanto ente e agente cultural permitiu que ele reconquistasse um lugar de cidadão. Ser e dono de saberes até então não evidenciados, mas, o mais importante de tudo: autônomo, íntegro e inteiro. Como pessoa surdocega, seu Sousa enfrentava os olhares de piedade que não se comprometiam com a prática comunicativa. Passava horas sentado no banquinho de concreto na porta de entrada da escola completamente alheio, sozinho e ignorado. Após ser aplaudido no palco, ele passou a ser reconhecido também na vida.

3.3 QUANDO O TEATRO ESPELHA A VIDA E A VIDA ESPELHA O TEATRO

Lançamos-nos, após o primeiro espetáculo solo do seu Sousa, a um novo e gratificante desafio. Quando um surdocego é capaz de performar sozinho, ele está pronto para a performance em grupo. E surgiu, a partir dos resgates de memórias culturais e vivências familiares do estudante, a necessidade de encenar um desafio. De contracenar com outra pessoa. Num primeiro momento, pode parecer estranho colocar para um estudante surdocego o desafio de contracenar com outro ator, afinal, suas limitações de compreensão e linguagem são bastante limitadoras do processo natural de comunicação. Entretanto, segundo uma perspectiva interacionista, política e crítica do desenvolvimento humano, concordamos com Paulo Freire quando afirma que:

“Uma das tarefas mais importantes da prática educativo-crítica é propiciar as condições em que os educandos em suas relações uns com os outros e todos com o professor ou a professora ensaiam a experiência profunda de assumir-se. Assumir-se como ser social e histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque é capaz de amar.” (FREIRE, 2004, p. 41)

Neste sentido, tornou-se imperativo que eu propiciasse ao meu estudante a possibilidade de atuar em grupo. Este estudante, especificamente, tinha grande dificuldade de participar ativamente das atividades propostas no coral, pois não conseguia lidar com tessituras de sons e quando as vozes se sobrepunham ao piano, violão e percussão, percebia que sua irritação tornava-se muito evidente. Além disso, ele se queixava de dor de cabeça devido ao esforço para permanecer com aparelho auditivo ligado num ambiente onde a textura sonora era bastante complexa. Foi sugerido junto à coordenação um aumento no quantitativo de atendimentos semanais ao estudante e começamos uma pesquisa biográfico-cultural para investigar as matrizes estéticas e culturais às quais ele se sentia vinculado.

Iniciamos o processo de criação de personagem partindo da construção imagética da fisicalização da função arquetípica exercida por Patativa do Assaré na memória e afetos deste estudante. A personagem por vezes se misturava com a figura histórica, mas fluía muito mais como uma espécie de alter ego do estudante, que, incorporando suas experiências de vida como matrizes criativas da personagem, nutria a si mesmo de experiências sensoriais e permitia-se um caminho de autodescoberta na experimentação do próprio corpo expressivo.

Foi elaborado um novo planejamento individualizado de metas de aprendizagem, que incluíam a prática de exercícios respiratórios, alongamentos, jogos de propriocepção e ainda a criação de uma gramática gestual própria. Esse processo ocorreu por meio de uma série de jogos e pesquisas exploratórias para localizar as frequências sonoras que eram percebidas mais facilmente, de maneira a criar um vocabulário de comandos essenciais para direcionar o corpo no espaço. E cada pequena conquista era comemorada intensamente e compartilhada com seus pares.

Em todo processo de aprendizagem e desenvolvimento do Seu Sousa foi possível visualizar o que Freire (2004) propõe em relação aos processos de aprendizagem. Segundo ele “Aprender para nós é construir, reconstruir, constatar para mudar, o que não se faz sem abertura ao risco e à aventura do espírito.” (FREIRE, 2004, p. 69). É nesse contexto que nos lançamos numa intensa e sensível viagem de descoberta do próprio corpo, numa pesquisa detalhada e minuciosa de tornar o corpo sensível. Nossa expectativa era a de despertar a audição através da pele, sensibilizar este imenso órgão que é capaz de perceber temperatura, ambiente, luz e, também, os sons. Foi preciso um órgão  Foram necessários uma enorme confiança e uma grande capacidade de entrega para que as experimentações pudessem ser levadas a  contento.  E, meu  estudante, um senhor idoso,  de  saúde  frágil e  grandes  limitações físicas, entregou-se de corpo e confiança e capacidade de entrega para que as experimentações pudessem ser levadas a contento. E, meu estudante, um senhor idoso, de saúde frágil e grandes limitações físicas, entregou-se de corpo e alma em cada desafio que lhe era proposto.  

Com os resultados obtidos mediante toda a dinâmica da execução de alguns jogos, vivências e experimentos em multilinguagens, chegamos à esquematização de um jogo performativo. Nesse jogo, Patativa do Assaré, desta vez enquanto personagem, com modos, gestos e trejeitos próprios, contracenava com a alma de Zé Limeira. Inicialmente, não nos era possível corporificar Zé Limeira. Era preciso amalgamar e tornar memória física toda a construção da cena, decodificação dos gestos da personagem, memorização da partitura corporal, organização perceptiva da movimentação no espaço, dentre outras necessidades. Todas essas demandas eram anteriores àquela etapa em que outra complexidade entraria no mesmo espaço criativo para que o jogo entre os dois atores acontecesse.

Escolhemos cuidadosamente o colega para representar Zé Limeira. Ele também era cego total, mas tinha, ao contrário do seu Sousa, uma enorme desenvoltura corporal e conseguia se estabelecer com grande fluência no espaço cênico. A diversidade, o ritmo distinto dos personagens possibilitou e me permitiu enquanto educadora, trabalhar outros aspectos criativos quando ambos foram colocados na aula simultaneamente. A direção de um acontecia oralmente, com uso da minha voz. De modo que com o outro, toda a direção de cena era realizada mediante sutis toques e indicações sonoras. Foram precisos mais de quatro meses de intenso trabalho para que o resultado estético fosse satisfatório para todos os envolvidos e pudesse ser apresentado para a comunidade escolar. De jogos para liberar a articulação do punho, baseados no método Bertazzo, passamos a jogos para aprender a segurar o microfone e posicioná-lo corretamente diante do próprio rosto.

Fizemos muitos estudos, cursos de curta duração e consultas com médicos otorrinolaringologistas, além da atuação inter e transdisciplinar com a professora Fatima Cader-Nascimento, especialista em surdocegueira, para conseguirmos estruturar um projeto de desenvolvimento expressivo para o estudante. E os resultados foram absolutamente surpreendentes!

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS: POR UMA RELAÇÃO HORIZONTAL DE APRENDIZAGEM

Concluímos, a partir da experiência de ensino-aprendizagem e do-discência realizada junto ao estudante Sousa, que o trabalho educativo proporcionado pelo teatro na educação mais imediato é a mudança de vida, como podemos observar nas conquistas do estudante ao longo do contato com o teatro.

Sousa, ao conquistar a possibilidade de expressar-se através de personagens, libertando-se de suas  limitações  orgânicas, tornando-se um corpo  sem órgãos, conseguiu  readquirir dignidade diante da comunidade escolar. E, ao trabalhar arduamente num processo de reabilitação, por meio da conquista do próprio corpo expressivo, ele conseguiu desenvolver uma autonomia sobre sua própria aprendizagem. E esta autonomia para aprender transformou-se em autonomia cidadã. Empoderando-se, ele começou a trazer aos colegas e à professora sugestões e seus próprios desafios e temáticas de interesse para pesquisa artística e estética.

Em todo o processo vivenciado no contexto das aulas de cênicas para deficientes sensoriais, surdocegos, ficou clara  a necessidade de integridade e compromisso ético por parte do professor. Nesse sentido, faz-se necessário o reconhecimento das próprias fragilidades, do não saber e da necessidade constante de aprimoramento, diante dos desafios trazidos por cada estudante. Aliada à necessidade de desenvolver uma generosidade firme e um rigor estético capaz de absorver as limitações dos estudantes, pois a peculiaridade da práxis pedagógica é a de que todos os meus estudantes são pessoas inseridas em um contexto social, histórico e dinâmico. São deficientes visuais: cegos, baixa visão e surdocegos, em grande maioria idosos e com dificuldades de memória, manifestam limitação ou restrição de movimentos, transtornos de fala e desenvolvimento, além das complexas síndromes, bem como processos individuais de luto diante da perda da visão, além das intempéries sociais e do abandono familiar. Processos humanos que precisam ser compartilhados para serem melhor compreendidos, sendo o teatro um dos campos promissores para o espaço de reelaboração das histórias pessoais. Portanto, o desafio que é colocado à prática pedagógica é transformar limitações em possibilidades de crescimento e inovar as linguagens artísticas diariamente. Tudo com objetivo não somente de lhes permitir o acesso, mas principalmente, possibilitar o protagonismo nas artes a estes seres humanos que criam, expressam, vivenciam e produzem artes através dos mecanismos, adaptações e liberdade criativa que lhes são próprios.

A concretização da acessibilidade só é possível quando a arte-educadora,  enquanto mediadora, propulsora de energia, catalisadora de ideias e mobilizadora da comunidade, possibilita, oferece suporte, amplia e experimenta diariamente em sala de aula as possibilidades que emergem dos obstáculos a serem superados.


COMO CITAR:

BARROS, Clarissa. Seu Sousa: Construindo Saberes. In: Sala de Recursos Revista, vol.2, n.2,  p. 102-115 , maio – agos. 2021. Disponível em:<http://www.saladerecursos.com.br>.


 


5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARBA, Eugenio. A canoa de Papel – Tratado de Antropologia Teatral. Brasília: Editora Dulcina, 3a edição, 2012. 280 p.

BERTAZZO, Ivaldo. Gesto orientado: reeducação do movimento. São Paulo: Edições Sesc, 2014. 384 p.

BOAL, Augusto. O Arco Íris do Desejo: método Boal de teatro e terapia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. 220 p.

BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. São Paulo: Editora 34, 2019. 232 p.

CADER-NASCIMENTO, Fatima; COSTA, Maria da Piedade. Descobrindo a Surdocegueira: educação e comunicação. São Carlos: EdUFSCar, 2010. 78 p.

CADER-NASCIMENTO, Fatima Ali Abdalah Abdel. Surdocegueira e os desafios da escrita. Curitiba: CRV, 2021. 112 p.

CLANDININ, Dorothy Jean. Personal Practical Knowledge: a study of teachers practical knowledge. Curriculum Inquiry. Toronto: Blackwell Pub., v. 15, p.361-385, 1985, 

ELBAZ, Freema. Teacher Thinking: a case study of practical knowledge. New York: Nichols Publishing, 1983. 239 p.

FREIRE, Paulo. Educação e Mudança. São Paulo: Paz e Terra, 2011. 46 p.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra. 30a edição, 2004. 148 p.

GROTOWSKI, Jerzy. Em busca de um teatro pobre. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 4a edição, 1992. 220 p.

LEINHARDT, Gaea. Capturing craft knowledge in teaching. Educational Resercher. Thousand Oaks, CA, USA: Sage Pub., v.19, n.2, p.18-25, 1990, 

MUNBY, Hugh. Metaphore in the thinking of teachers: an exploratory study. Journal of Curriculum studies,  v. 18, p. 197-209, 1986.

PORTO, Eline. A corporeidade do cego: novos olhares. Piracicaba/São Paulo: Editora UNIMEP/MEMNON, 2005 127 p.

SALLES, Cecília Almeida. Gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo: Intermeios, 5ª edição, 2011. 186 p.


5. ANEXOS

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