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DA LÓGICA MANICOMIAL À REFORMA PSIQUIÁTRICA: UMA HISTÓRIA EM MOVIMENTO.

Lúcia Regina Oliveira e Pinho: Mestra em História Cultural/Universidade de Brasília UnB-DF, Departamento de História. Juíza do Trabalho aposentada.

  • luciapinho22@hotmail.com

 

 

 

 


1. RESUMO

O presente artigo tem como objetivo central apresentar uma visão panorâmica do processo histórico no qual se inseriu a mudança de paradigma de cuidados e atenção em saúde mental no Brasil. Analisa-se a formação e fundamentação do modelo manicomial, assentado na lógica da exclusão e segregação, e do modelo humanizado, que objetiva a reinserção social das pessoas com transtornos mentais ou em sofrimento psíquico. Em sua parte inicial apresenta-se o processo de formação e hegemonia do modelo manicomial influenciado pelas concepções da psiquiatria francesa implantada por Philippe Pinel, ao final do século XVIII. Na sua segunda parte, é apresentado o processo histórico no qual se inseriu a passagem para o modelo humanizado e comunitário no Brasil que culminou com a promulgação da Lei de Reforma Psiquiátrica, também conhecida como Lei Paulo Delgado, em 2001. Aborda-se o protagonismo do movimento da luta antimanicomial e a implantação do modelo como política pública em saúde mental. Parte-se do enfoque da historiografia, máxime nas concepções foucaultianas sobre a evolução epistemológica do conceito de loucura e representações decorrentes, da análise bibliográfica e documental dos eventos relevantes da transição de paradigmas. Conclui-se que a Reforma Psiquiátrica, em sendo um processo cultural, social, político e ético, na definição do psiquiatra Paulo Amarante, é um modelo inacabado e contínuo suscetível a recuos.

Palavras-chave:

História. Manicômio. Philippe Pinel. Luta Antimanicomial. Franco Basaglia.


2. INTRODUÇÃO

Na história ocidental, a experiência da loucura deslizou lentamente na escala epistemológica, segundo demonstra os estudos de Michel Foucault, na renomada obra História da Loucura. Passou pela indiferenciação, quando é percebida como um modo de saber diferente, à categoria de doença, ao final do século XVIII, decorrendo a necessidade de ser tratada. De uma forma peculiar de se estar no mundo, historicamente passou a ser denominada como alienação, doença mental, transtornos psíquicos e, a contar dos meados do século XX, abriu-se um leque de subcategorizações universalmente convencionadas. Destarte, as vicissitudes e as experiências próprias da condição humana são enquadradas em diagnósticos padronizados. Independentemente da época, a exclusão sempre foi uma realidade atrelada à experiência da loucura.

A estigmatização e o preconceito em torno da doença mental são o efeito de representações e crenças historicamente construídas que fomentaram inúmeros processos que mantiveram e justificaram a exclusão social reiterada da pessoa em sofrimento mental.

Na cultura ocidental, pessoas passando por sofrimento grave ou que apresentem comportamento divergente do esperado pela sociedade, podem ser rotuladas como “loucas” e sofrer em decorrência discriminação, exclusão e diferentes formas de violências. Neste sentido, Amarante (2023, p.18) o manicômio deve ser entendido como “reflexo da própria cultura social que operava a exclusão estrutural das pessoas diversas e diferentes, fora das normas sociais.” A periculosidade, incapacidade e passividade são estereótipos da pessoa “mentalmente doente”, que justificou historicamente sua segregação social e gerou muito sofrimento.

Na primeira parte do presente artigo, trazemos uma rápida trajetória da concretização da construção do poder histórico da psiquiatria a partir da sujeição total ao saber e ao poder da ciência e da hegemonia do pensamento médico. Como enfatiza Rohden (2009, p. 19), no século XIX, a medicina passa a ser definida como “a grande ciência capaz de traduzir para a sociedade os desígnios naturais, com base em métodos considerados objetivos e racionais”. Certamente não podemos trazer valores contemporâneos para julgar e criticar práticas passadas, o que adquiriria uma dimensão completamente anacrônica quando ainda se revolve, além de contextos sociais e culturais e políticos diversos, a evolução da ciência médica. Decisões clínicas e tratamentos terapêuticos se justificam, em grande medida, com sua temporalidade e territorialidade. O interesse é demonstrar o percurso da consagração do saber médico, como único modelo explicativo do sofrimento psíquico, nas palavras de Foucault: “Há uma certa forma de consciência, historicamente situada, que se apoderou da loucura e que dominou seu sentido.” (2019, p. 471).

Na segunda parte do presente estudo, analisa-se a evolução da luta antimanicomial, decorrente do reconhecimento da ineficácia da assistência psiquiátrica essencialmente hospitalocêntrica, que culminou em transformações profundas. O movimento reformista no Brasil insere-se no contexto internacional de luta contra o paradigma asilar, que se inspira no movimento reformista italiano da década 1970 , encabeçado pelo psiquiatra Franco Basaglia. No Brasil, o movimento de luta antimanicomial é viabilizado pelo processo de abertura política pelo qual passava o país. O movimento excedeu a inicial reivindicação pela humanização das instituições psiquiátricas, passou a exigir o fim dos manicômios e a criação de uma rede de saúde mental e atenção psicossocial substitutiva ao modelo anterior.

A Lei da Reforma Psiquiátrica brasileira, também conhecida como Lei Paulo Delgado, foi promulgada em 2001. Em linhas gerais, estabeleceu os direitos das pessoas com transtornos mentais ou em sofrimento psíquico a um tratamento digno que privilegiasse a reinserção social. De tal forma, reorientou a política de saúde mental no país, transmudando de modelo fulcrado na lógica do manicômio para o modelo comunitário, com tratamento humanizado.

Para reflexão sobre o percurso da mudança no paradigma psiquiátrico, do modelo asilar excludente para o modelo humanizado, parte-se de um estudo de natureza qualitativa, voltada à compreensão dos elementos estruturantes da lógica manicomial e do movimento de luta antimanicomial. O enfoque historiográfico tem por base a pesquisa bibliográfica e a documental. A abordagem bibliográfica recorreu às concepções do filósofo francês Michel Foucault, que analisa a instabilidade epistemológica do conceito de loucura, na longa temporalidade; ao trabalho do acadêmico e psiquiatra húngaro Thomas Szasz, que aborda a fabricação da doença mental na cultura ocidental; nas reflexões do psiquiatra italiano Franco Basaglia, sobre a lógica manicomial e nos estudos do psiquiatra e pesquisador brasileiro Paulo Amarante, acerca o percurso histórico do movimento de luta antimanicomial e da reforma psiquiátrica no Brasil e revistas especializadas e artigos científicos, dentre outras referências.

Analisa-se a formação do pensamento hegemônico sobre o tratamento da loucura influenciado pelas concepções da psiquiatria moderna trazidas e implementadas pelo médico Philippe Pinel. Formato que, por sua ampla aceitação no meio médico e social, conheceu grande longevidade, estabelecendo-se por mais de um século.

O presente artigo também se particularizou pelo tratamento analítico de fontes de natureza documental. Neste diapasão, foram apreciados e analisados: documentos legais, como a Constituição Federal de 1988, a Lei da Reforma Psiquiatra Brasileira de 2001 e portarias emitidas pelo Ministério da Saúde; documentos institucionais, como a Nota Técnica n. 11 emitida pelo Ministério da Saúde, em 2019 e a Nota de Repúdio do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, em 2019 e literatura ficcional, como o ensaio O alienista de Machado de Assis e literatura jornalística, como o livro Holocausto Brasileiro de Daniela Arbex, dentre outras fontes.

A Reforma Psiquiátrica é um processo político e social complexo, composto por atores, instituições e forças de diferentes origens, e que incide em territórios diversos: nos governos federal, estadual e municipal, nas universidades, no mercado dos serviços de saúde, nos conselhos profissionais, nas associações de pessoas com transtornos mentais e de seus familiares, nos movimentos sociais, e nos territórios do imaginário social e da opinião pública. Compreendida como um conjunto de transformações de práticas, saberes, valores culturais e sociais, é no cotidiano da vida das instituições, dos serviços e das relações interpessoais que o

processo da Reforma Psiquiátrica avança, marcado por impasses, tensões, conflitos e desafios. Nas páginas seguintes, fizemos o esforço de descrição dos principais componentes da história da Reforma Psiquiátrica no Brasil, com destaque para o processo de delineamento progressivo da política de saúde mental do Ministério da Saúde, alinhada com os princípios da Reforma. A Reforma Psiquiátrica é influenciada por idiossincrasias da vida política, social e cultural. Na lição de Amarante (1998), a desinstitucionalização é um processo técnico, administrativo, jurídico, legislativo ou político, e acima de tudo, um processo ético, de reconhecimento de uma prática que introduz novos sujeitos de direito e novos direitos para os sujeitos (AMARANTE, 1998). Portanto, está em plena evolução, suscetível de conhecer avanços e sofrer recuos.


 

3. DA LÓGICA MANICOMIAL: da construção à consolidação

“Una casa de alienados es un instrumento de curación; entre las manos de um médico hábil es el agente más potente contra las enfermidades mentales”. Jean-Étienne-Dominique Esquirol1


Ao final do século XVIII, pela primeira vez no mundo cristão, a doença é isolada da pobreza e de todas as misérias e desatinos. A loucura é retirada das paredes dos internamentos que conhece desde a Renascença e é lançada a uma solidão estranhamente silenciosa, a uma solidão que a isola do mundo e “a cerca com uma espécie de zona neutra e vazia” (FOUCAULT, 2019, p. 430). Não é possível se falar em doença mental antes deste período, não há ainda um “pensamento médico-científico sistematizado sobre a doença mental, e o louco não era assumido pela medicina como doente” (PACHECO, 2003, p. 153).

Sob a Revolução Francesa consuma-se a transformação da loucura como doença mental, tornando-se assim objeto do conhecimento da medicina e se estabelecendo a necessidade de internação dos loucos em lugares específicos. Firma-se uma nova forma de ver a loucura; agora sob a perspectiva científica. A loucura, porquanto desvio da ‘razão normal’, como toda doença, pode ser suprimida pela cura, como esclarece Pinho (2021).

A psiquiatria do final do século XVIII e início do século XX será conduzida pelas concepções do médico francês Pinel (1745-1826) que categoriza o louco como “vítima de uma desorganização das funções mentais superiores do sistema nervoso central, ou seja, das funções intelectuais” (PACHECO, 2003, p. 154).

Pinel é um homem contemporâneo ao movimento revolucionário francês que enterra o Antigo Regime, abre as vias para a instalação do Estado Burguês e testemunha transformações políticas, sociais, econômicas que impactarão o campo da medicina. Segundo Amarante (2007), as principais mudanças nesta área ocorrerem na instituição chamada hospital. Impulsionados pelo espírito da época, muitos médicos foram atuar no sentido de humanizar aqueles espaços conhecidos como Hospital Geral. O Hospital Geral é fundado em 1656, em Paris, como uma entidade administrativa, ao lado dos poderes constituídos e com poder de decidir, julgar e executar. Um espaço meramente de segregação, sem qualquer pretensão de tratamento médico, para onde iam todos os que indesejados ou que não se enquadram nos padrões da ordem política, religiosa ou da incipiente ordem burguesa2.

A liberação dos acorrentados de Bicêtre protagonizada por Pinel ocorre em 1793, momento em que já era médico da instituição. Criada antes da Revolução como “casa dos pobres”, ali se misturavam, indigentes, velhos, condenados, prisioneiros políticos e os loucos. Pinel opõe-se à extradição dos alienados e assim Bicêtre torna-se o hospital onde a loucura será cuidada até a cura.

A função médica é claramente introduzida em Bicêtre e, pela primeira vez na história do Hospital Geral, é nomeado para as enfermarias de Bicêtre um homem que já adquiriu certa reputação no conhecimento das doenças do espírito, a designação de Pinel prova por si só que a presença de loucos em Bicêtre já é por si só um problema médico. (FOUCAULT, 2019, p. 495)

Na reforma levada a termo por Pinel, o manicômio não configurava um espaço propriamente de exclusão, mas um local diferenciado no qual a loucura poderia manifestar suas verdades e receber sua cura, em que seria captada por um olhar atento que estaria acima e ao seu redor permanentemente. Funda os primeiros hospitais psiquiátricos, não adota o termo “doença mental”, mas alienação, tem por princípio o completo isolamento social do alienado e instaura como método terapêutico o tratamento moral. As concepções do reformista francês se assentam na crença no poder da ciência e no progresso da civilização, nos princípios do pensamento científico e filosófico trazidos pelo Iluminismo. Acredita que a alienação se originava de causas físicas, de causas hereditárias e de causas morais. A intervenção médica e científica proposta pelo alienista prometem recuperar os irrecuperáveis: aqueles desprovidos do atributo da razão.

O internamento, agora nos manicômios, recebe o que Foucault (2019, p. 448) classifica de “carta de nobreza médica”, lugar onde se operará a cura, no qual se supõe que “por uma espécie de mecanismo autóctone”, a loucura suprimirá a si mesma. A medicina agora irá se apossar do asilo, todavia é o próprio internamento que assumirá valor terapêutico. É ali que a metodologia de Pinel, baseada na observação clínica sistemática e na delimitação de categorias psicopatológicas estáveis, vai sendo construída. Não há diálogo entre o médico e o alienado. A ciência das doenças mentais terá que esperar o século XX para estabelecer alguma interlocução com o assistido. Por enquanto, dentro dos manicômios, fica apenas na esfera da observação e da classificação.

O século XIX encontra a loucura asilada e completamente dominada. Para Foucault3, a loucura passa ao domínio da autoridade daquele que detém a razão e que, portanto, não coabita o mesmo espaço. O vigilante não reprime, ele enfrenta a loucura não como pessoa, contudo como um ser de razão. E acrescenta (2019, p. 501), que o espaço reservado pela sociedade à alienação vai ser doravante assombrado pelos que estão “do outro lado”, e que representam ao mesmo tempo os prestígios da autoridade que interna e o rigor da razão que julga”.

O manicômio sublinha o domínio da moral pura e da uniformização ética que apagam as diferenças. Deve reproduzir a continuidade da moral social, fulcradas nos valores da família e do trabalho. É neste locu que as diferenças serão reduzidas, os vícios reprimidos e as irregularidades extintas por meio da aplicação de uma pedagogia que impõe horários e rotinas rígidas, atividades laborais e de lazer e terapia medicamentosa prescrita apenas pelo médico. O tratamento moral consistia essencialmente no sequestro dos divergentes dos padrões sociais comportamentais e seu enclausuramento nos hospitais psiquiátricos, onde afastados das influências do seu meio social, seriam tratados dentro de normas rígidas.

A devassidão, o mau comportamento e a “extrema perversidade dos costumes”, o hábito do vício como o da bebedeira, o da galanteria ilimitada, e sem escolha, o de um comportamento desordenado ou o de uma despreocupação apática podem aos poucos degradar a razão e levar a uma alienação declarada”. A preguiça “é o resultado mais constante e o mais unânime da experiência em todos os asilos públicos, como nas prisões e nos hospícios, que o meio mais seguro e talvez a única garantia da manutenção da saúde, do bom comportamento e da ordem é a lei de um trabalho mecânico rigorosamente executado. (PINEL apud FOUCAULT, 2019, p. 506-507)

É assim o manicômio estabelecido por Pinel: um instrumento de uniformização moral e espaço em que se apagam as alienações originadas nos limites exteriores da sociedade. As concepções pinelianas sobre o alienismo, suas causas e métodos de tratamento, conhecerão continuidade pela clínica dos alienistas do século XIX. Em 1838, Esquirol elaborou a lei que obrigava o Estado a dar tratamento aos insensatos em asilos da rede pública ou em instituições privadas.

A estrutura mais importante no espaço asilar a contar do final do século XVIII é o médico. É ele que irá administrar a orquestra da experiência moderna da loucura. É ele que autoriza ou não o internamento do louco, que classifica as doenças, que reconhece sintomas, que diagnostica, que impõe rotinas, que ministra medicamentos, que determina procedimentos terapêuticos .

A representação literária pode revelar os valores e sentimentos da sociedade durante períodos específicos. O estudo da história passa pelo universo da literatura, na concepção de Jablonka (2016). O historiador francês entende que a análise transitiva da obra ficcional parte do pressuposto que a ficção remete ao “real”4. Neste compasso, é interessante observar, que no Brasil uma crítica contundente ao modelo empoderamento da figura do médico veio da literatura ficcional.

No conto O alienista, Machado de Assis5 em 1881 aborda a inovadora instituição que pretende tratar os alienados e a influência do cientificismo, bem como o impacto que exercem nos atores locais da cidade de Itaguaí. O autor ressalta a linha tênue entre a sanidade e a loucura e o darwinismo social, presente na mentalidade da sociedade carioca, que fragmentava as pessoas em categorias superiores e inferiores. Principalmente, destaca as certezas temporárias da nova ciência médica, por meio da voz do alienista Simão Bacamarte, e a centralidade do psiquiatra na condução do processo de diagnóstico e segregação do suposto alienado,

Suponho o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, é ver se posso extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia (ASSIS, 2017, p. 24).

O alienista Bacamarte traduz o espírito da psiquiatria positivista da época:

O principal nesta minha obra da Casa Verde6 é estudar profundamente a loucura, os seus diversos graus, classificar-lhe os casos, descobrir enfim a causa do fenômeno e o remédio universal. Este é o mistério do meu coração. Creio que com isto presto um bom serviço à humanidade. (ASSIS, 2017, p. 12)

Assis antecipou-se às ponderações e às críticas emergentes de setores da própria psiquiatria no século XX, quando se colocam em pauta os saberes médicos e a institucionalização do doente mental como meio terapêutico. O “xeque-mate” machadiano vem na forma da reflexão do vereador Sebastião Freitas: “Nada tenho que ver com a ciência; mas, se tantos homens em quem supomos juízo são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o alienista?” (ASSIS, 2017, p. 41)

Não há unanimidade epistemológica quando se trata de doenças mentais. Thomas Szasz (1910-2012) foi um dos primeiros pesquisadores e psiquiatras a questionar o conceito de “doença mental”, no ensaio O mito da doença mental, escrito em 1960. Szasz argumenta que a noção de doença mental se insere em um sistema de crenças (assim como a feitiçaria ou a religião) e, como um “tranquilizador social”, oferece solução para os conflitos pessoais, sociais e éticos inerentes à condição humana. Defende que o diagnóstico e os critérios diagnósticos são produções culturais e que as doenças em si são invenções e não descobertas. Considera que na saúde mental, sofrimentos demasiadamente humanos, como o luto, e conflitos internos que se exteriorizam no corpo, na alma ou na mente possam ser social, cultural ou historicamente descontextualizados e gerar um diagnóstico psiquiátrico.

Dentro da retrospectiva histórica trazida Foucault (2019), percebe-se a sucessão de modelos explicativos para a experiência do enlouquecimento, o que demonstra que se trata de um processo contínuo, no qual estamos imersos. Segundo Kimati (2023), a expressão do sofrimento mental é compreensível a partir da realidade histórica, política e econômica. Não há um aperfeiçoamento linear na visão hegemônica do sofrimento mental.

A partir de meados do século XX, a psiquiatria passou por um processo de unificação de diagnóstico de modo que um mesmo quadro clínico não comportasse diagnósticos diferentes. Segundo Kimati (2023, p. 43), ao estabelecer a doença mental pela universalidade, descartou-se o papel da experiência pessoal, desconsiderou-se “[…] que as pessoas vivenciam o sofrimento mental de forma própria, heterogênea.” O diagnóstico psiquiátrico universal categoriza o indivíduo ao enquadrar seu sofrimento, que denomina “desordens mentais e emocionais”, em uma DSM7.

Szasz, credita à psiquiatria moderna a atribuição de insanidade àqueles que apresentam comportamentos não considerados “normais” ou apropriados por seus familiares ou por membros da sociedade. Defende que o objetivo seria controlar e ajustar os divergentes.

O doente mental, especialmente quando assim definido contra sua vontade, talvez seja interpretado de maneira mais adequada como um “divergente”, seja da sociedade como um todo, ou de um grupo menor, geralmente a família. O indivíduo que difere de seus semelhantes, que perturba ou escandaliza sua família ou a sociedade, é muitas vezes condenado como insano; às vezes, nem precisa representar um papel de divergência para ser declarado louco. Essa degradação psiquiátrica atende a importantes necessidades dos membros “mentalmente sadios” do grupo (SZASZ, 1960, p. 113).

Ao analisarmos as origens do termo “alienação”, podemos compreender o impacto no entendimento da sociedade acerca da periculosidade do sujeito em sofrimento mental. Segundo Amarante, a terminologia utilizada por Pinel para se referir à loucura estimulou a construção do estereótipo do louco violento8 e desarrazoado.

Alienação mental era conceituada como um distúrbio no âmbito das paixões, capaz de produzir desarmonia na mente e na possibilidade objetiva de o indivíduo perceber a realidade. Para Hegel, que analisou o livro de Pinel, a alienação não seria a perda absoluta da Razão, mas simples desordem em seu âmago (AMARANTE, 2011, p. 30).

A ideia de que pessoas com transtornos mentais são violentas avaliza a justificativa da imperiosidade da segregação. Desta forma, a internação se faz necessária diante do suposto risco que elas representam para a sociedade. O imaginário popular, firmado ao longo do tempo com base nas afirmações da medicina, associa o crime violento a um autor desprovido de juízo, um louco, um alienado; único sujeito capaz de praticar atrocidades inexplicáveis. Se a justificativa para se segregar os hansenianos era o receio de contaminação, no caso da loucura, o medo do perigo que representavam os sonegavam o convívio social. A instituição manicomial indisfarçavelmente terá por finalidade proteger os sãos dos assaltos da loucura. E, diante da incapacidade de saber o que é melhor para si mesmo, sustenta-se a ideia de que o tratamento exige intervenções contra a sua vontade.

O asilo psiquiátrico tornou-se assim o imperativo para todos aqueles considerados loucos, despossuídos da Razão, delirantes, alucinados. O asilo, lugar da liberação dos alienados, transformou-se no maior a mais violento espaço da exclusão, de sonegação e mortificação das subjetividades (AMARANTE, 1995, p. 491).

A relação entre médico e alienado é essencialmente hierárquica, alimentada pelo mito do próprio poder técnico. O poder puro do médico diminui vertiginosamente o do doente, na relação institucional, o qual, pelo próprio fato de estar internado em um hospital psiquiátrico se torna automaticamente um cidadão sem direitos, entregue ao arbítrio do médico e enfermeiros.

Na dimensão institucional a reciprocidade não existe; sua ausência, aliás, não é sequer camuflada. É aqui que se vê, sem véus e sem hipocrisia, o que a ciência psiquiátrica, enquanto expressão da sociedade que a delega, quis fazer do doente mental (BATAGLIA, 1985, p. 107)

No livro Asylums, Goffman (1968) identifica os mecanismos perversos das instituições manicomiais, que o autor renomeou de “instituições totais”, destacando os processos de exclusão e limitação gradual a que está sujeita a pessoa oficialmente reconhecida como “paciente mental”. Bezerra (2011, p.14) traduz o manicômio como “um não lugar, um espaço desvitalizado no qual o tempo se estagnava, transformando seus habitantes em não sujeitos perambulando por um limbo existencial.”

Um diagnóstico literalmente tem o poder de confinar o indivíduo em estruturas físicas, com muros intransponíveis, vigilância constante, prédios padronizados, setores especializados, rotinas implacáveis, atividades forçadas, quarto e refeições coletivas… O modelo asilar segrega e anula subjetividades. As individualidades se dissolvem na paisagem institucional. Consoante Franco Basaglia, restam os corpos institucionalizados, à medida que o paciente incorpora a imagem institucional neles mesmos.

[…] o doente, que já sofre de uma privação de liberdade que se pode considerar como característica da própria doença, ao aderir a um novo corpo que é, na realidade, o da instituição, está negando cada desejo, cada ação e cada aspiração autônomos que fariam com se sentisse ainda vivo e ainda ele próprio. Torna-se um corpo vivido na instituição, pela instituição, a ponto de ser considerado parte de suas próprias estruturas físicas (BASAGLIA, 1985, p. 121).

O processo de implantação de instituições psiquiátricas se dava dentro de uma perspectiva médico-hospitalar de caráter científico, com fins de atender as políticas de saúde pública e oferecer um serviço de assistência à saúde mental aos pacientes (BORGES,2013, p.1531). A lógica manicomial é a da segregação e exclusão social. Originalmente pensado para ser um espaço cura, na prática aparece paradoxalmente, como local de aniquilamento de individualidades, onde se estabelece invariavelmente relações pautadas em violência, arbitrariedades e humilhações.

A história da psiquiatria brasileira nos traz dados que demonstram o quão trágica foi a experiência humana dentro dos muros dos manicômios. Assim como os presídios, eram geralmente construídos longe dos centros das cidades de forma a preservar a organização e higienização do espaço urbano

“Estive hoje num campo de concentração nazista. Em lugar nenhum do mundo, presenciei uma tragédia como esta”. Franco Basaglia9.

“O que acontece no Colônia é a desumanidade, a crueldade planejada. No hospício, tira-se o caráter humano de uma pessoa, e ela deixa de ser gente. É permitido andar nu e comer bosta, mas é proibido o protesto qualquer que seja a sua forma.” Ronaldo Simões Coelho10.

O Hospital Colônia em Barbacena (MG), um dos maiores manicômios do Brasil, foi palco do que ficou conhecido como o “Holocausto Brasileiro”. A jornalista Daniela Arbex apresenta as condições desumanas e degradantes impostas a um grande contingente de pessoas depositadas em um espaço destinado a lhes prestar assistência. A realidade documentada em imagens e entrevistas, transformadas no livro Holocausto brasileiro, abriu uma fissura no modelo de assistência à saúde mental de natureza eminentemente hospitalocêntrica ao expor à opinião pública uma política de violência e de violação aos direitos humanos.

Segundo dados colhidos pela jornalista, em 1961, o Hospital Colônia, tinha 25 vezes mais pacientes do que sua estrutura física suportava e, entre 1930 e 1980, ocorreu um verdadeiro extermínio nesse local: cerca de 60 mil pessoas morreram lá, sendo que 70% delas não haviam recebido nenhum diagnóstico antes de serem internadas. A maioria das pessoas enviadas para lá eram negras, homoafetivas, em situação de rua, mendigos, opositoras políticas, prostitutas ou quem era visto em sua família como “desajustado” de alguma forma. Embora, o objetivo inicial fosse oferecer tratamento a quem possuía algum transtorno mental, esse hospital acabou se transformando em um local de isolamento da sociedade e de extermínio daqueles não enquadrados nos padrões de normalidade da época e dos indesejados de toda sorte. Neste locus de banimento, o gesto que aprisiona vem carregado de significações políticas, sociais, religiosas, econômicas e morais, como analisa Foucault (2019, p. 53).

As mortes se avolumavam e tinha-se que dar uma destinação a suas vítimas. Lotes de cadáveres dos internos do Colônia eram vendidos e disputados por instituições de ensino, sem que houvesse qualquer consentimento dos seus familiares. Diretamente do Hospital Colônia, como denuncia a jornalista Daniela Arbex (2013), 1.823 corpos foram vendidos para dezessete faculdades de medicina do país, sendo que só a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) adquiriu 543 corpos em uma década.

Sanatórios de outros municípios mineiros também participaram deste mercado negro fornecendo os corpos dos internos que ceifavam. Estávamos diante de um crime de lesa-humanidade, já definido em 1945, pelos estatutos do Tribunal Internacional de Nuremberg, como observa Gonçalves (2001), para julgar os atos perpetrados pelos criminosos nazistas, crimes inconcebíveis e deste modo, não codificados11.

Desde o início do século XX, a falta de critério médico para as internações era rotina no lugar onde se padronizava tudo, inclusive os diagnósticos. Maria de Jesus, brasileira de apenas vinte e três anos, teve o Colônia como destino, em 1911, porque apresentava tristeza como sintoma. Assim como ela, a estimativa é que 70% dos atendidos não sofressem de doença mental. Apenas eram diferentes ou ameaçavam a ordem pública. Por isso, o Colônia tornou–se destino de desafetos, homossexuais, militantes políticos, mães solteiras, alcoolistas, mendigos, negros, pobres, pessoas sem documentos e todos os tipos de indesejados, inclusive os chamados insanos. A teoria eugenista, que sustentava a ideia de limpeza social, fortalecia o hospital e justificava seus abusos. Livrar a sociedade da escória, desfazendo-se dela, de preferência em local que a vista não pudesse alcançar (ARBEX, 2013, p. 23-24).

O Colônia de Barbacena é um marco indelével na história da psiquiatria mineira, mas refletiu a realidade do sistema manicomial brasileiro. Em 1980, é determinado o fechamento do Hospital Psiquiátrico de Barbacena.

Segundo Amarante (2023, p.16), o termo “colônia” foi naturalizado, passando a ideia de uma civilização exclusiva de loucos e de um espaço de gestão de toda espécie de distúrbios mentais e sociais. Realidades semelhantes à do Hospital Colônia de Barbacena foram evidenciadas em vários outros manicômios do Brasil, a exemplo do Hospício Colônia de Juqueri (SP), dos Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira (PA). Podemos apontar ainda o Hospital Colônia Sant’Ana, no município de São José (SC), cuja fundação também remonta “ao início da institucionalização da loucura”, como observa Borges (2007, p. 1531).

É preciso perceber que nenhuma violação dos direitos humanos mais básicos se sustenta por tanto tempo sem a nossa omissão, menos ainda uma bárbara como esta Barbacena. Eliane Brum.12

Os discursos e práticas psiquiátricas produziram muitas vítimas, entretanto não se pode, no caso brasileiro, atribuir tão-somente aos iniciais conhecimentos da ciência médica a barbárie que predominou no sistema manicomial no país. Ao prefaciar Holocausto brasileiro de Arbex (2013, p. ?), Eliane Brum destaca que as violações aos direitos humanos no “colônias” brasileiros foram deliberada e reiteradamente “esquecidas”:

“Umas poucas vezes, os esqueletos do Colônia subiram à superfície. Passada a comoção pública, voltavam ao fundo empurrados pelas pedras de sempre. Em 1961, a rotina do hospício foi contada na revista O Cruzeiro, pelo fotógrafo Luiz Alfredo e pelo repórter José Franco. O título da matéria era: “A sucursal do inferno”. Em 1979, o repórter Hiram Firmino e a fotógrafa Jane Faria publicaram a reportagem “Os porões da loucura”, no Estado de Minas. O documentário Em nome da razão, de Helvécio Ratton, filmado em 1979, tornou-se um símbolo da luta antimanicomial.

Houve aceitação ou tolerância por parte da sociedade. Houve omissão por parte do Estado Brasileiro, por negligência ou como prática de uma política estatal que punia apartando da sociedade, insanos, anormais ou simplesmente inimigos políticos; o que se evidenciou no período em que o Brasil viveu um estado de exceção – 1964 a 1984

 


1 Esquirol (1772-1840), médico francês discípulo de Pinel, construtor do pensamento psicopatológico contemporâneo.

2 Em regime de internamento apresenta-se uma massa eclética. Interna-se o insano como o desajustado social, o pobre, os inocentes malformados e disformes, os espíritos fracos, a prostituta e o debochado.

3 Como destaca Foucault em nota à página 649, Philippe Pinel já havia redigido vários artigos sobre melancolia, o regime moral adequado para os maníacos e sobre um tipo de melancolia que leva ao suicídio, só para citar.

4 O espaço cinematográfico, sem muito desvio da realidade, também produziu obras que retratam o dia a dia dentro de instituições psiquiátricas. A precariedade diagnóstica, a violência impetrada contra os internos, por meio de práticas terapêuticas, dentro dos muros institucionais são algumas das condições abordadas. Destacamos grandes clássicos da filmografia estadunidense, Garota, Interrompida (1999), baseado no livro de mesmo nome e o drama Um estranho no ninho (1975) e, na produção cinematográfica brasileira, Bicho de sete cabeças (2000).

5 Em regime de internamento apresenta-se uma massa eclética. Interna-se o insano como o desajustado social, o pobre, os inocentes malformados e disformes, os espíritos fracos, a prostituta e o debochado.

Casa Verde é o nome dado por Simão Bacamarte ao hospício que inaugura no Rio de Janeiro no município de Itaguaí.

7 DSM 5 é a sigla para Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, documento criado pela Associação Americana de Psiquiatria (APA) para padronizar os critérios diagnósticos das desordens que afetam a mente e as emoções. O número 5 indica que está em sua quinta edição. O DSM é um quadro orgânico à medida que se expande ao incorporar novos conhecimentos científicos.

8 Franco Basaglia refuta o entendimento da psiquiatria quanto à periculosidade do louco: “Se o conceito básico da psiquiatria era que o louco é perigoso, assim como um mais um é igual a dois, demonstramos que o louco é perigoso, assim como qualquer outra pessoa que atue na sociedade tem a mesma chance de ser perigosa. A prática tem mudado o resultado de um mais um (BASAGLIA, 2000, p.151).

9 Declaração médico italiano Franco Basaglia, pioneiro na luta antimanicomial, ao visitar o Hospital Colônia, em 1979.

10 Psiquiatra demitido após denunciar as condições e tratamentos desumanos observados no Hospital Colônia e pedir sua extinção.

11Crime contra a humanidade, segundo a definição vigente no direito internacional, são crimes cometidos como parte de um ataque sistemático de uma pessoa ou de um grupo contra uma população civil atentando contra a vida e a dignidade dessas pessoas, conferindo-lhes sofrimento proposital. O Tribunal Penal Internacional (TPI), criado pelo Estatuto de Roma, é um organismo internacional permanente, com jurisdição para investigar e julgar indivíduos acusados de genocídio e crimes contra a humanidade. Em 20 de junho de 2002, o Brasil ratificou o Estatuto de Roma, que passou a integrar a legislação brasileira. Disponível em: < https://www.gov.br/mre/pt-br/delbrasonu/temas-juridicos/tribunal-penal-internacional> acesso em 17 maio 2023.

12 No prefácio à primeira edição da obra Holocausto Brasileiro, de Daniela Arbex.


4. A REFORMA PSIQUIÁTRICA: um processo complexo e contínuo.

“Quando dizemos não ao asilo, dizemos não à miséria do mundo e nos unimos com todas as pessoas do mundo que lutam por uma situação de emancipação. Franco Basaglia”13

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, trouxe uma garantia de liberdade, insuflando movimentos contestatórios, cujo ápice se deu no icônico ano de 1968. A partir da década de 1970, iniciou-se um movimento em vários países em que colocava em debate a lógica manicomial, os tratamentos convencionais que impingiam sofrimento ao doente, os diagnósticos e o próprio conceito de doença mental. O professor Desviat acrescenta que,

Não era a negação da doença mental nem da psiquiatria, nem tampouco o simples fechamento do hospital psiquiátrico, mas uma coisa muito mais complexa, que se relacionava com a recusa do mandado outorgado pela sociedade aos psiquiatras para que eles isolassem, exorcizassem e anulassem os sujeitos à margem da normalidade social (DESVIAT, 1999, p. 44).

O movimento reivindicava uma reconfiguração do modelo de assistência em saúde mental. Denunciava-se a violação dos direitos das pessoas institucionalizadas, questionava-se a exclusividade dos conceitos terapêuticos centrados na psiquiatria e o clássico modelo hospitalocêntrico. A gênese das reformas psiquiátricas, que veremos implementadas em vários países, está no movimento de luta antimanicomial.

No Brasil, o movimento reformista adquire força com o arrefecimento da ditadura militar e o processo de abertura política, que observamos em meados da década de 1970. Todavia, um marco na história da evolução da saúde mental no Brasil, que precede inclusive a tímida movimentação antimanicomial naquele momento, é certamente o trabalho de Nise Magalhães da Silveira (1905-1999).

No início de sua atuação na psiquiatria, Nise positivou que a maioria dos internos não tinham qualquer contato social e que 70% dos que recebiam alta, retornavam à instituição. A psiquiatra alagoana procurou sensibilizar as autoridades e a sociedade acerca da ineficácia da terapêutica aplicada e das condições sub-humanas dos manicômios brasileiros. Acreditava que procedimentos usuais como a lobotomia e a eletroconvulsoterapia não recuperavam a sanidade dos internos e anulavam suas personalidades.

Silveira concluiu pela ineficácia flagrante do modelo asilar e assim nasceu a Casa das Palmeiras, “[…] uma instituição intermediária entre a internação e a vida em sociedade, espécie de câmara de descompressão.” (MELO, 2023, p. 25)

Em 1946, abriu um ateliê de pintura na Seção de Terapêutica Ocupacional do Centro Psiquiátrico, no bairro do Engenho de Dentro (RJ). Propunha uma terapia alternativa centrada no paradigma estético. Consoante Bezerra Jr. (2011, p. 14), o ateliê que Nise criou “era uma ilha de emoções, de relações afetivas, de expressão subjetiva, um lugar de convívio e exploração da singularidade”.

Sua atuação se mostrou frutífera15: em 1952, fundou o Museu de Imagens do Inconsciente e, em 1956, inaugurou a Casa das Palmeiras, clínica com as portas abertas que antecedeu a criação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).

A exuberância da produção de pinturas, desenhos e modelagens realizados neste ambiente de liberdade fez aflorar as individualidades, como relata Melo (2023, p. 24):

[…] fez emergir pessoas com nome e sobrenome, pessoas com lembranças, saudades, sofrimentos, ambições e desejos. O enquadre ético e a instalação do humano possibilitaram o resgate de histórias de vida, contadas em revistas, livros, filmes e exposições artístico-científicas.

Em abril de 1978, nascia o MTSM – Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental que seria o protagonista do processo reformista da psiquiatria brasileira.

Muitos eventos concorrem para manter a ascensão da luta antimanicomial. Em outubro de 1978, um seminário internacional traz ao Brasil pensadores críticos ao sistema assistencial em saúde mental, como Szazz, Goffman, Castel e Basaglia. O médico e pensador Franco Basaglia é a pessoa-símbolo da luta antimanicomial global. Liderou o movimento reformista italiano e foi referência para a reforma psiquiátrica no Brasil. Em seus estudos e militância, denunciava a estrutura autoritária, coercitiva e hierárquica sobre a qual se apoiava a instituição psiquiátrica. Questionava a eficácia do sistema de tratamento que colocava o internamento no hospital psiquiátrico como o próprio ato terapêutico. Propunha uma transformação profunda em toda a estrutura manicomial italiana que em si se mostrou destrutiva e anti terapêutica: uma reforma de alto a baixo. Defendia que o tratamento da pessoa em sofrimento mental apenas seria exitoso com a construção e manutenção de uma rede de apoio multiprofissional, com psiquiatras, terapeutas e assistentes sociais e com a participação efetiva da família e do próprio paciente. Em 13 de maio de 1978, foi outorgada a lei que determinou o fechamento definitivo dos 98 hospitais psiquiátricos na Itália. A primeira no mundo (SERAPIONI, 2019, p.1169-1187).

O pensamento crítico de Basaglia e a experiência da luta italiana irão influenciar em grande medida o movimento de reforma psiquiátrica no Brasil. Em sua primeira viagem ao Brasil, Basaglia conheceu o Hospital Colônia de Barbacena. Para Amarante (2023, p. 17), um marco histórico no movimento reformista:

Impactado pelas cenas de miséria e violência da instituição, Basaglia comparou-a a um ´campo de concentração nazista`, lugar de produção de morte e não de cuidado e tratamento. A visita repercutiu fortemente na imprensa, tendo em vista que a sociedade brasileira não tinha nenhuma noção do que eram aquelas supostas ´instituições de assistência médica.

As décadas de 1970 e 1980 são marcadas pelo pensamento crítico à institucionalização da loucura. Nos anos 1980, experiências práticas de assistência e cuidados em liberdade passaram a ser protagonizadas pelo Movimento de Luta Antimanicomial, que nasce do MTSM, envolvendo os usuários, familiares, centros assistenciais e centros culturais. Em São Paulo, nasce o primeiro Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) prestando serviços de cuidado intensivo a usuários com quadro psiquiátrico grave sem lançar mão da hospitalização, modelo assistencial hegemônico no momento (AMARANTE, 2018).

A Constituição Federal, de 1988, também conhecida por Constituição Cidadã, trouxe a garantia e a fundamentação jurídica para a reforma. O artigo primeiro define a cidadania e a dignidade humana como um dos fundamentos do Estado Brasileiro. O terceiro, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a promoção do bem comum sem discriminação de qualquer espécie, como objetivos fundamentais do país. O artigo quinto dispõe sobre os direitos e garantias fundamentais, consagrando no caput o princípio da igualdade, ao dispor que todos são iguais perante a lei e sem distinção de qualquer natureza. O inciso III determina “que ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento desumano ou degradante.” Todos, valores democráticos caros para a luta antimanicomial.

A Constituição de 88 estabeleceu a saúde como um direito de todos os cidadãos e obrigação do Estado e, em conjunto com a Assistência e a Previdência Social, passou a compor a Seguridade Social brasileira. Reza o artigo 196:

A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. (BRASIL, 1988)

O SUS, sistema único de saúde, ficou definido como política pública de saúde:

Art. 198 As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:

I – descentralização, com direção única em cada esfera de governo;

II – atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;

III – participação da comunidade.

§ 1º. O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes. (BRASIL, 1988).

A reforma psiquiátrica no Brasil virá na forma da Lei n. 10.216, aprovada em 2001, também nomeada “Lei Paulo Delgado16”. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental.

A Lei n. 10.216/2001 estabelece a responsabilidade exclusiva do Estado Brasileiro na condução da política de saúde mental. Atendendo às exigências do Movimento de Luta Antimanicomial, a Reforma Psiquiátrica Brasileira tem por pilares a desospitalização, a desinstitucionalização e a ressocialização das pessoas acometidas de transtorno mental ou em sofrimento psíquico.

A internação em instituições asilares, assim definidas como instituições desprovidas de estrutura de assistência integral, ou seja, que não inclua serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais e de lazer, é vetada de forma peremptória. Em suma, estabelece-se o fechamento progressivo dos hospitais psiquiátricos e a redução dos leitos, importando em uma reconfiguração do clássico modelo de assistência asilar para o modelo comunitário, prevendo a abertura de serviços comunitários e a participação social no acompanhamento de sua implementação. Nesse sentido, Foucault (2019, p. 428) vaticinou apontando que “O lugar natural da cura não é o hospital, é a família, pelo menos o meio imediato do doente.”

A ressocialização é reconhecida como um dos direitos do portador de transtorno mental e meio necessário para se alcançar a sua recuperação. As internações serão cogitadas apenas quando exauridos todos os recursos extra-hospitalares e ainda assim por tempo limitado. O objetivo central da lei é a reinserção social, o resgate da cidadania e o respeito à dignidade humana que se dará pelo convívio social, o acesso à cultura, ao trabalho, à produção de renda e pela atenção direcionada. O cuidado humanizado em saúde mental importa em ver aqueles que vivenciam diferentes formas de sofrimento psicológico para além de sua condição nosológica. O usuário do sistema sai da condição de observador marginal e passa a participar ativamente de todo o processo e das decisões sobre a forma do tratamento.

Deriva do texto legal a substituição dos manicômios por uma Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) em todo o território nacional, que é instituído em 2011 (BRASIL, 2011). A rede consiste em um modelo articulado, extra-hospitalar, não mais centralizado na figura do médico e conduzido por equipes multiprofissionais. De forma gratuita, oferece tratamentos conduzidos por profissionais especializados como médicos, psicólogos, terapeutas ocupacionais, enfermeiros, assistentes sociais e outros a pessoas em sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do SUS. O trabalho em rede se caracteriza pela transversalidade das práticas e saberes entre os profissionais de saúde, em diálogo com as experiências e vivências do usuário, familiares e comunidades.

A Rede de Atenção Psicossocial é composta pelos Centros de Atenção Psicossocial, os serviços residenciais psiquiátricos, as unidades de acolhimento, os leitos de saúde mental em hospitais gerais e o Programa de Volta para Casa.

Importante destacarmos que a política de saúde mental estruturada pela Lei Paulo Delgado está intimamente vinculada à criação do SUS e ao processo de redemocratização do Brasil. A proposta de um sistema único de saúde foi elaborada pelo sanitarista Sérgio Arouca, do Centro de Estudos de Saúde, e constava do documento “A questão democrática na área da saúde”, apresentado no I Simpósio de Políticas de Saúde da Câmara dos Deputados, em 1979. Universalização, equidade e integralidade são os princípios norteadores do SUS incorporados pela Constituição Federal de 1988, o que ensejará a implantação de uma política de saúde mental no país.

O Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) é o substitutivo do hospital psiquiátrico e representa o câmbio no secular paradigma asilar. Nos termos da Portaria SAS/MS n. 224, 1992, “é a porta de entrada da rede serviços para as ações relativas à saúde mental, considerando sua característica de unidade de saúde local e regionalizada”. Os serviços de saúde são de caráter aberto e comunitário e se direcionam,

[…] a pessoas com sofrimento psíquico ou transtorno mental, incluindo aquelas com necessidades decorrentes do uso de álcool, crack e outras substâncias, que se encontram em situações de crise ou em processos de reabilitação psicossocial (BRASIL, 2023, p. ?).

Os Caps se apresentam em modalidades diferenciadas segundo o público-alvo e o recorte populacional:

Caps I: Atendimento a todas as faixas etárias, para transtornos mentais graves e persistentes, inclusive pelo uso de substâncias psicoativas; atende cidades e ou regiões com pelo menos 15 mil habitantes.

Caps II: Atendimento a todas as faixas etárias, para transtornos mentais graves e persistentes, inclusive pelo uso de substâncias psicoativas; atende cidades e ou regiões com pelo menos 70 mil habitantes.

Caps AD: Álcool e Drogas: Atendimento a todas faixas etárias, especializado em transtornos pelo uso de álcool e outras drogas, atende cidades e ou regiões com pelo menos 70 mil habitantes.

Caps III: Atendimento com até 5 vagas de acolhimento noturno e observação; todas faixas etárias; transtornos mentais graves e persistentes inclusive pelo uso de substâncias psicoativas; atende cidades e ou regiões com pelo menos 150 mil habitantes.

Caps AD III: Álcool e Drogas: Atendimento com 8 a 12 vagas de acolhimento noturno e observação; funcionamento 24h; todas faixas etárias; transtornos pelo uso de álcool e outras drogas; atende cidades e ou regiões com pelo menos 150 mil habitantes.

Caps AD IV: Atendimento a pessoas com quadros graves e intenso sofrimento decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas. Sua implantação deve ser planejada junto a cenas de uso em municípios com mais de 500.000 habitantes e capitais de estado, de forma a maximizar a assistência a essa parcela da população. Tem como objetivos atender pessoas de todas as faixas etárias; proporcionar serviços de atenção contínua, com funcionamento 24h, incluindo feriados e fins de semana; e ofertar assistência a urgências e emergências, contando com leitos de observação. (BRASIL, 2023.)

Os Caps fornecem atendimento individualizado ou em grupo; atividades comunitárias; oficinas de trabalho, visando à capacitação e à geração de renda; oficinas de arte, fornecimento de refeições, dentre outras modalidades. A prevenção das doenças mentais está no centro da rede de atenção, concretizando-se por meio de cuidados e orientações, em domicílios, aos usuários e à família, de modo a se antecipar ou evitar a instalação de crises e surtos (BRASIL, 1992). Os hospitais psiquiátricos não estão inseridos na Raps; pois constituem a atenção terciária, observada quando todos os demais instrumentos de assistência na saúde mental se mostrarem insuficientes.

Em 2000, por meio da Portaria n. 106/GM/MS, são criados os Serviços Residenciais Terapêuticos em Saúde Mental (BRASIL, 2000), destinando moradia ao portador de transtornos mentais egressos de internações de longa permanência. A Portaria n. 3.588/2017 estendeu o acolhimento a pessoas com transtornos mentais graves, moradores de rua e egressos de unidades prisionais comuns. Os SRT constituem um substitutivo à internação psiquiátrica prolongada e se inserem na lógica antimanicomial.

Ancorado na Lei n. 10.708, de 31 de julho de 2003, é lançado o Programa de Volta para a Casa (BRASIL, 2003). O PVC é um avanço na Reforma Psiquiátrica. Ao oferecer auxílio à reabilitação psicossocial das pessoas com histórico de longa permanência em hospitais psiquiátricos ou de custódia, estimula que exerçam plenamente seus direitos civis, políticos e de cidadania.

A eficácia da Reforma Psiquiátrica excede as necessárias estratégias de desinstitucionalização, como a reforma de serviços e tecnologias de cuidado. Há todo um arcabouço cultural a ser reelaborado a respeito da visão da sociedade acerca das pessoas com transtornos mentais, que passa pela educação, conscientização e reflexões.

Amarante (2019) analisa o conceito, destacando:

A Reforma Psiquiátrica é um processo social complexo. É social, porque envolve atores sociais diversos, conflitos interpessoais, revisões técnicas, visões de mundo, ideologias e religiosidades diferentes. No sentido epistemológico, porque não há ciência ou um saber psiquiátrico e/ou psicanalítico que dê conta da dimensão e complexidade dessa experiência humana. A experiência do inconsciente, do psiquismo e da subjetividade, assim como a vida e a existência, sempre estarão além daquilo que o homem pode explicar.

Nas últimas décadas, a Reforma Psiquiátrica logrou avanços relevantes nas políticas de saúde mental e atenção psicossocial.

A Política Nacional de Saúde Mental está em vias de consolidação com a ampliação da RAPS em todo o território nacional. Segundo dados atualizados do Ministério da Saúde (2023), o Brasil conta no momento com 2.836 Caps habilitados, distribuídos em 1.910 municípios, presentes em todos os estados da Federação e DF, totalizando um custeio anual superior a R $1,27 milhão. Em 2021, o valor do benefício instituído pelo PVC foi reajustado para R$500,00 e entregues diretamente ao beneficiário. Possui 813 SRTs com custeio de R$ 130 milhões anuais. O número de leitos de saúde mental em hospitais gerais saltou de 719 em 2013 para 1952 em 2022. Os dados colhidos ainda apontam para a expressiva diminuição de leitos psiquiátricos em hospitais especializados: dos 30.244 em 2007 caiu para 12.662 em junho/2022. Contudo, as conquistas vêm sendo progressivamente ameaçadas.

No contexto do advento RAPS emerge uma resistência ao processo de reforma psiquiátrica, conhecido como “contrarreforma”, consagrada na constituição das “comunidades terapêuticas”. Segundo Pinho (2023), as CTs ganham protagonismo no acolhimento de pessoas que fazem uso de álcool e outras drogas durante os governos Michel Temer (2016 – 2019) e Jair Bolsonaro (2019 – 2022) e, com a criação da Secretaria Nacional de Prevenção às Drogas, passa à subordinação do Ministério da Cidadania. Ainda que não sejam dispositivos de cuidado e nem políticas públicas, vai se consagrando como instituição substitutiva na agenda de oferta de atenção que deve ser ofertado apenas pelo SUS e pelo Sistema Único de Assistência Social (SUAS).

Paradoxal, porque, no contexto do SUS, a política nacional de saúde mental, álcool e outras drogas, alinhado à reforma psiquiátrica, tem como parte de sua história os processos de desinstitucionalização de hospitais psiquiátricos, acumulando grande experiência na substituição de equipamentos do modelo asilar por rede de serviços comunitários e garantidores de direitos. (PINHO, 2023, p. 37)

O pesquisador aponta que as comunidades terapêuticas são instituições privadas que captam investimentos de custeio destinados às políticas públicas de cuidado em saúde mental, álcool e drogas, derivando o enfraquecimento do SUS. Por outro lado, não se submetem a nenhum tipo de fiscalização dos financiamentos públicos drenados, gozam de fraco ou inexistente controle social e tem no trabalho, disciplina e espiritualidade seus pilares.

Retomando a lógica manicomial, as CTs impõem o isolamento social das pessoas adictas na crença de que afastados do “lócus do uso e do acesso a drogas, elas se ‘curam’.” As CTs encontram-se vinculadas a igrejas ou organizações religiosas ou a organizações que tenham a espiritualidade como meio de enfrentamento à drogadição (PINHO, 2023, p. 38). Em suma, ferem o direito à liberdade religiosa garantida na Constituição Federal e, retrocedendo mais de um século na história da psiquiatria, apostam na “cura” pelo tratamento moral. O Conselho Regional de Psicologia de São Paulo alerta para as situações de maus tratos, práticas de violência e violações de direitos humanos reiteradamente denunciadas contra as comunidades terapêuticas e noticiadas ostensivamente na mídia clássica como na digital.

Desde 2015, os recursos públicos financiadores das políticas de saúde mental no Brasil vêm diminuindo e são direcionados às comunidades terapêuticas e a hospitais psiquiátricos fomentando o aumento de instituições asilares.

Em 2019, a Reforma Psiquiátrica é atingida em seus pilares basilares construídos após décadas de luta contra o modelo psiquiátrico asilar e debates com a sociedade sobre política pública em saúde mental. O Ministério da Saúde, na gestão de Luiz Henrique Mandetta, emitiu a Nota Técnica n. 11/2019-CGMAD/DAPES/SAS/MSN propondo modificações na Política Nacional de Saúde Mental e nas diretrizes da Política Nacional sobre Drogas. A nota propõe a retomada de formas de tratamento invasivos, como a eletroconvulsoterapia (ECT); privilegia a internação como melhor via terapêutica, o que estimula a proliferação de hospitais psiquiátricos, o aumento de leitos em hospitais convencionais e o incentivo à fundação de comunidades terapêuticas (CT); promove a abstinência como solução para a drogadição; recomenda a internação de crianças e adolescentes, dentre outras propostas.

A Nota Técnica explicita a intenção de incorporação dos hospitais psiquiátricos à RAPS:

É importante ressaltar que a RAPS está sendo expandida e fortalecida, sem prejuízo de nenhum de seus componentes, mantendo a política de assistência comunitária, no território, com intervenções o menos invasivas possíveis e mantendo também as ações de desinstitucionalização (saída de moradores de Hospitais Psiquiátricos). Não cabe mais a ideia de que Hospitais Psiquiátricos devem abrigar moradores. Porém, também não cabe mais a ideia de que tais Serviços devam ser fechados (grifo nosso). Os Hospitais Psiquiátricos devem ter qualidade para receber pacientes para internações humanizadas e com vistas ao seu retorno para Serviços de base territorial, assim que possível. (BRASIL, 2019, p. 8)

A nota repercutiu negativamente na sociedade civil e recebeu e críticas de setores ligados à saúde mental. Em nota de repúdio emitida em 15 de fevereiro de 2019, o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo enfatiza que “o modelo de cuidado em liberdade está em jogo com o reinvestimento em hospitais psiquiátricos” e alerta para o potencial descompromisso de tais instituições com a “violação dos direitos humanos considerando a conjuntura social, econômica e política que passava o país.”

Outra ameaça preocupante aos avanços na política de saúde mental ocorreu em dezembro de 2020, quando o Ministério da Saúde apresentou uma planilha com propostas de revogação de várias portarias editadas entre 1991 e 2014 que estabelecem a política pública de saúde mental. Entre as mudanças sugeridas pelo “revogaço” do governo federal estavam o fim do Programa De Volta para Casa, das equipes de Consultório na Rua e o Serviço Residencial Terapêutico, consoante informa o portal Agência Senado.

Todos esses acontecimentos vêm abrindo fissuras na Reforma Psiquiátrica, o que representa um grande retrocesso de uma política pública de saúde mental internacionalmente reconhecida. E um grande risco para a saúde de milhões de brasileiros.



13 BASAGLIA, Franco. Conferenze brasiliane. Org. Franca Basaglia Ongaro; Maria Grazia Giannichedda. Milano: Raffaello Cortina. 2000, p. 28.

14“ Nise da Silveira rejeitava a palavra paciente em relação aos internos dos hospitais psiquiátricos. Ela determinava o uso de clientes para reforçar a relação de troca, mas preferia sempre se referir a eles pelos nomes. Cada pessoa é um universo. São muitas as histórias de reações severas da doutora quando ouvia alguém se referir a seus clientes como pacientes.” Projeto Ocupação do Itaú Cultural, Nise da Silveira. Disponível em: https://www.itaucultural.org.br/ocupacao/nise-da-silveira/jung/. Acesso em: 26 de maio 2023.

15 Em 2019, a Universidade Federal Fluminense (UFF) e O Museu de Imagens do Inconsciente (RJ) se uniram numa homenagem à Nise da Silveira pelos 20 anos de sua morte. O documentário conta a história de sua vida. Disponível em: https://www.canalsaude.fiocruz.br/canal/videoAberto/imagens-do-inconsciente-doc-cs30-0003. Acesso em: 26 maio 2023.

16 Paulo Delgado é sociólogo e ex-deputado federal. Foi autor do Projeto de Lei n. 3.657, de 1989, que previa a extinção dos manicômios no Brasil. Em seus termos, “dispõe sobre a extinção progressiva dos manicômios e sua substituição por outros recursos assistenciais e regulamenta a internação psiquiátrica compulsória”.


 

 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

“Há muitas ameaças e há muitos retrocessos que estão sendo engendrados a partir de quem não acredita na liberdade e nem aceita a humanidade na sua fartura que ela deva carregar. Mas há uma resistência por quem passou por manicômio. Eu lembro da fala do Zé Alves, que é líder do movimento da saúde mental no Distrito Federal, e ele diz: ‘Eu fiquei dois anos no hospício e, em dois anos, eu morri várias vezes.’ E ele diz: ‘ nenhum passo atrás: manicômio nunca mais!” Érika Kokay17

Os manicômios, também conhecidos como hospícios, colônia e hospitais psiquiátricos foram concebidos como local ideal e necessário ao tratamento dos alienados; na linguagem psiquiátrica mais recente, dos doentes mentais. Neste espaço, privados do convívio dos familiares e amigos, supostamente receberiam tratamento adequado e alcançariam a cura. As concepções da psiquiatria francesa de Philippe Pinel tomavam por base a lógica manicomial. A cura para os transtornos mentais estava atrelada à segregação e ao tratamento moral. Os manicômios se mostraram, no curso histórico, como espaço de exclusão que degradava as individualidades. Contrariamente ao seu desiderato primaz de tratamento, o que se viu foi o cárcere deliberado e a reiterada violação dos direitos do homem e do cidadão.

Não existe democracia sem liberdade e respeito pela diversidade humana. A luta antimanicomial é acima de tudo uma luta pelos direitos das pessoas com transtorno mentais a um tratamento digno. A Lei 10.216/2001 é um marco histórico e desafiador para as práticas em saúde mental e nasce de um movimento aguerrido de reforma psiquiátrica propiciado pela redemocratização do Brasil. A Constituição de 1988, ao definir o Sistema único de Saúde como política pública de saúde, resgata a cidadania e declara que a saúde é um direito de todos.

A Lei da Reforma Psiquiátrica brasileira reconfigurou o modelo assistencial em saúde mental no País, tendo como principal repercussão a mudança do regime asilar de tratamento para o tratamento em meio comunitário realizado sobretudo nos diversos tipos de Centros de Atenção Psicossocial. Hoje, os Caps dão assistência completa biopsicossocial, oferecendo um atendimento humanizado viabilizado pela ampla rede de atenção e cuidados aos usuários do sistema.

A concretização da mudança na política pública da saúde mental enfrenta desafios culturais, políticos, sociais e éticos. Depende de regulamentações, sendo que a maior parte dos programas estão assentados em normas instáveis como as portarias ministeriais, que são instrumentos suscetíveis de alteração a depender da orientação política governamental. Demanda a formação técnica e teórica dos profissionais, atualização constante dos saberes e investimentos financeiros suficientes no Sistema Único de Saúde.

O desmonte de instituições asilares, a criação de uma rede de assistência da saúde mental, o suporte legal que vai de norma constitucional a normas infralegais são frutos da luta antimanicomial. Em que pese os objetivos alcançados e os esforços reiterados na ampliação e

melhoramentos do sistema, há que se considerar a necessidade de uma mudança cultural na forma que as pessoas em sofrimento mental e psíquico são percebidas e tratadas dentro da sociedade. Amarante (1995) destaca que a desinstitucionalização vai além da superação do modelo arcaico centrado no hospital e na relação dual doente-médico. A Reforma Psiquiátrica prioriza o usuário como sujeito de direito que é; e não como objeto da prática psiquiátrica.

A manutenção de direitos, duramente conquistados, demanda vigilância constante. O Brasil vivencia um movimento de contrarreforma que objetiva resgatar o modelo manicomial. A Reforma Psiquiátrica vem sofrendo assaltos e a sociedade brasileira precisa acompanhar esses movimentos.

É preciso estar atento e forte.


17 Discurso da deputada federal Érika Kokay na Sessão Solene em Homenagem ao Aniversário de Brasília, na Câmara dos Deputados, em 25 de abril de 2022. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/868531-lei-da-reforma-psiquiatrica-completa-21-anos-em-meio-a-avancos-e-desafios/. Acesso em: 01 jun. 2023.

 

6. REFERÊNCIAS

AMARANTE, Paulo. Novos Sujeitos, Novos Direitos: O Debate sobre a Reforma Psiquiátrica no Brasil. Caderno de Saúde Pública. Rio de Janeiro: jul. – set., p. 491- 494,1995.

AMARANTE, Paulo; NUNES, Mônica de Oliveira. A reforma psiquiátrica no SUS e a luta por uma sociedade sem manicômios. Ciência & Saúde Coletiva. Rio de Janeiro: v. 23, n. 6, jun. p. 2067 – 2074, 2018.

AMARANTE, Paulo. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2007.

______. O pesadelo da normalidade. Revista Cult. São Paulo: v. 292, n. 26, abri., p. 16-20, 2023.

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