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Os Efeitos da Intervenção Pedagógica no Bem-Estar de um Estudante Surdocego com Doença Mental



Marineide de Castro Pinheiro Araújo: Graduada em pedagogia pelo instituto Superior de Educação Franciscano Nossa Senhora de Fátima (2012), Psicopedagoga, professora guia-intérprete da Classe Bilíngue Diferenciada da Secretaria de Educação do Distrito Federal, atuou como professora e coordenadora na APAE-DF, como supervisora /orientadora de cursos FIC do PRONATEC, pelo Instituto Federal de Brasília – IFB

1. RESUMO

O presente trabalho refere-se a um relato de experiência de intervenção pedagógica realizada pela díade: professora na função de guia-intérprete e um estudante surdocego com deficiência intelectual, esquizofrenia e surto psicótico. O objetivo consistiu na equiparação de oportunidades, a mútua interação de pessoas com deficiência e o pleno acesso aos recursos culturais da sociedade. Participou desse trabalho um estudante do sexo masculino, atualmente com 42 anos, possui surdocegueira pós-linguística, a surdez profunda bilateral foi a primeira manifestação e a cegueira a segunda associada à doença mental. O programa de intervenção privilegiou propostas manuais, comunicacionais e interativas como forma de articular o fazer didático intencional com os processos de apropriação do conhecimento pelo estudante com base no uso de recursos que valorizaram os sentidos remanescentes. Os resultados obtidos com a intervenção evidenciaram o prazer do estudante em frequentar as aulas, ampliou o tempo de concentração nas atividades manuais, mostrou interesse e motivação para a aprendizagem da relação entre o alfabeto manual e o código braille. Os dados permitem concluir a importância do professor na função de guia-intérprete, o plano de ensino individualizado para o atendimento educacional especializado como sendo cruciais para viabilizar a acessibilidade às informações e dar melhores condições de apropriação dos conhecimentos compartilhados gerando bem-estar para o participante.

Palavras-chaves:

Surdocego. Acessibilidade. Capacidade. Inclusão. Qualidade de vida. Bem-estar.


2. INTRODUÇÃO

Para a Organização Mundial da Saúde – OMS (apud ARAÚJO, 2019), a surdocegueira é compreendida como a incapacidade total ou parcial da audição e da visão. No entanto, é importante ressaltar que a surdocegueira vai além de uma condição física e sensorial. Ela engloba uma história de indivíduos com sua própria identidade e cultura, presentes em todo o mundo, que enfrentam os desafios da surdocegueira e contribuem para a construção de sua própria história, cultura e conhecimento diariamente, bem como envolve o aspecto linguístico, conforme salienta Cader-Nascimento (2021).

A surdocegueira não se resume à simples combinação de surdez e cegueira, nem é apenas um problema de comunicação e percepção, embora abarque todos esses fatores e outros mais (MCINNES e TREFFY, 1991). Conforme apontado por Telford e Sawrey (1976), quando a visão e a audição estão gravemente comprometidas, os problemas relacionados à aprendizagem de comportamentos socialmente aceitos e à adaptação ao meio se multiplicam, fato que demanda por atendimento educacional especializado.

A surdocegueira pode ser considerada por muitos como uma condição multissensorial e deficiência múltipla. No entanto, devido às especificidades decorrentes da ausência de contato com o ambiente através dos sentidos da visão e audição, ela resulta em uma condição única. No caso do participante deste estudo, ele é considerado um múltiplo deficiente sensorial devido à comorbidade relacionada ao transtorno mental (esquizofrenia/surto psicótico), apresentando múltiplos comprometimentos e condição de saúde frágeis. Ele apresenta dificuldades nas rotinas e habilidades da vida diária, bem como em outras habilidades de comunicação. Além disso, ele realiza movimentos corporais sem propósito em resposta a estímulos táteis e outros. Cader-Nascimento e Faulstich (2016, p.109) afirmam que o termo “surdocegueira” precisa ser considerado em relação a essas particularidades:

A natureza e a extensão do termo surdocegueira pode desencadear interpretações equivocadas uma vez que o termo em si gera uma compreensão da ausência total da recepção pela via auditiva e visual. A combinação dos distintos graus de surdez com as variações clínicas e funcionais próprias da deficiência visual pode, todavia, ocorrer na mesma pessoa.

Nota-se na abordagem das autoras que se faz referência à perda sensorial, sem referência ao comprometimento mental. Quando ocorre a surdocegueira associada à comorbidade da doença mental, a classificação passa a ser de múltiplo deficiente sensorial.

Dessa forma, uma pessoa com múltipla deficiência sensorial é aquela que apresenta deficiência visual e auditiva, além de outras condições de comportamento e comprometimentos, que podem estar relacionados à área física, intelectual ou emocional, incluindo quadros de transtorno mental. É importante destacar que, na maioria dos casos, não são apenas os canais de visão e audição que são afetados, mas também outros sistemas, como o tátil (toque), vestibular (equilíbrio), proprioceptivo (percepção da posição corporal), olfativo (aromas e odores) e gustativo (sabor). Limitações em qualquer uma dessas áreas podem ter um impacto significativo no funcionamento, aprendizagem e desenvolvimento da pessoa (PERREAULT, 2002).

No entanto, é importante ressaltar que, independentemente de ser surdocego ou possuir múltiplas deficiências sensoriais, é fundamental garantir os direitos da pessoa em relação ao exercício da cidadania. Para isso, torna-se crucial implementar um programa de atendimento educacional especializado individualizado, que permita o ensino intencional e promova uma melhor qualidade de vida e bem-estar para o indivíduo. Nesse contexto, é fundamental considerar os processos de acessibilidade à informação, os quais desempenham um papel essencial no desenvolvimento das potencialidades intelectuais das pessoas. Abordaremos esses aspectos detalhadamente a seguir.

3. Desenvolvimento

3.1 A importância da comunicação adequada

No momento de comunicar com alguns estudantes que possuem deficiência intelectual, muitas vezes as dificuldades de comunicação constituem em um obstáculo na interação. Na área sócio educacional, em alguns casos, ocorre uma assincronia no funcionamento do processamento das informações e da idade cronológica. Diante dessa realidade, é necessário mediar a interação social entre pares com a mesma idade cronológica, interesses e que possam compartilhar recursos de comunicação comuns como: gestos, desenhos, alfabeto, libras adaptada, escrita, dentre outros que o contexto e a situação permitirem. Essa prática possibilita ao grupo participar de atividades comuns. Nesse processo, o intercâmbio entre os pares proporciona momentos ricos de aprendizagem de novos comportamentos, valores e atitudes correspondentes à própria faixa etária. É preciso ter cuidado e atenção quando se leva em consideração apenas o fato da inclusão em turmas com o mesmo nível de funcionamento do processamento cognitivo. Nesses casos, de acordo com Honora e Frizando (2008), ao invés de contribuir para seu desenvolvimento, pode gerar a infantilização e estabelecer barreiras ao desenvolvimento psíquico-social. A esse respeito as autoras afirmam que:

Não existem “receitas” prontas para trabalhar com pessoas que têm deficiência intelectual, devemos ter em mente que cada pessoa é uma e que suas potencialidades, necessidades e conhecimentos ou experiências prévias devem ser levados em conta, sempre. (HONORA E FRIZANCO, 2008, p. 107).

 

Honora e Frizanco, (2008) sugerem algumas dicas que podem ser importantes para trabalhar com estudante com deficiência intelectual, e, no nosso caso, na múltipla deficiência sensorial:

  • focar a atenção, dando prioridade aos objetivos que se quer ensinar;
  • partir de contextos reais;
  • criar situações de aprendizagem positivas e significativas, preferencialmente em ambientes naturais aos alunos;
  • usar situações e formas o mais concreta possível;
  • transferir comportamentos e aprendizados adquiridos para novas situações;
  • dividir as tarefas em partes, com graduação das dificuldades, respeitando o ritmo do aluno;
  • motivar, elogiar o sucesso e valorizar a autoestima;
  • ampliar os atendimentos para além da área dos conhecimentos acadêmicos, com vistas a aprendizados que melhorem a qualidade de vida de todos os estudantes.

As autoras também alertam que embora o quociente de inteligência (QI) ainda seja uma das medidas usadas na avaliação psicométrica das pessoas, os resultados não devem ser usados como rotulação. Deve-se ter o cuidado de evitar a estigmatização dessas pessoas. Conforme propõe Vigotski (1995), todos os estudantes podem ser alcançados como uma abordagem apropriada, mediante o trabalho realizado a partir da zona de desenvolvimento proximal e por meio da mediação dos instrumentos e dos signos. Desta forma, é possível proporcionar a aprendizagem de novas habilidades que facilitem sua criatividade e capacidade de conhecer o mundo e sua própria identidade levando em consideração os antecedentes de formação e experiência de vida.

Na perspectiva histórico-cultural, a pessoa com deficiência deve ser estudada levando-se em consideração suas limitações, isto é, não se pode negar a surdez, a cegueira, as síndromes, pois são alterações orgânicas instaladas. Mas, para Vigotski (1995), a deficiência primária (biológica) não impede o desenvolvimento do indivíduo, mas o que o coletivo, o social, a cultura realiza a partir da relação que estabelece com a pessoa com deficiência será o delimitador das possibilidades ou dos entraves ao desenvolvimento.

Vygotsky considera a pessoa com deficiência como uma pessoa singular, com características próprias, cujo desenvolvimento depende dos processos de mediação presentes nas interações sociais e da natureza da deficiência.O paradigma vygotskyano, nos apresenta diversas possibilidades de desenvolvimento do sujeito com necessidades educativas especiais. Nessa perspectiva, um conceito que devemos ter sempre em mente é que a inteligência é dinâmica, havendo a possibilidade de uma evolução. Vygotsky nos fornece a base dessa concepção ao postular que a inteligência não é inata, mas se constrói nas trocas constantes com o meio ambiente. A educação se insere nesse contexto, tendo a escola um papel privilegiado nesse processo. Para isto, torna-se essencial lembrar o que o autor diz sobre as relações entre aprendizagem e desenvolvimento, o que é bem sintetizado no seu conceito de zona de desenvolvimento proximal.

O conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) proposto por Vygotsky representa um marco teórico crucial na compreensão do potencial de desenvolvimento da pessoa com deficiência. Ao receber o suporte de indivíduos mais habilidosos, como adultos, professores ou colegas mais capazes, a pessoa com deficiência é capaz de realizar atividades em parceria, além do que seria possível por conta própria. Esse conceito revela o potencial não realizado do indivíduo, apontando para suas capacidades latentes. Diante da perspectiva histórico cultural, iremos apresentar a experiência pedagógica realizada com o estudante com múltipla deficiência sensorial.

4.Método

4.1Perfil do estudante participante

O participante deste estudo é um estudante com diversos sonhos, como qualquer outra pessoa, o qual será identificado nesse relato como M42, sendo que a letra M representa o gênero masculino e o algarismo a idade. Ele é do sexo masculino, nasceu em 10 de novembro de 1980, é filho de mãe solo e possui uma irmã que constitui sua rede de apoio familiar. Atualmente, estuda em uma Classe Bilíngue Diferenciada da EJA Interventiva em uma escola de ensino fundamental anos finais de uma região administrativa de Brasília, distante 45 km do plano piloto. Possui experiência escolar na infância em escolas regulares, conforme ilustra a Figura 2.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Podemos observar na Figura 3 que M42 não manifesta alteração visual. Ele nasceu com surdez profunda bilateral neurossensorial. Iniciou sua vida escolar na década dos anos 80 aos 6 anos. Nesta época, não havia intérprete de língua de sinais na sala de aula, mesmo assim conseguiu desenvolver suas habilidades educacionais, dentro da perspectiva de ensino oralista para surdos. Ele teve contato com a língua de sinais na comunidade surda. Foi alfabetizado em português sinalizado, com o tempo foi adquirindo habilidades esportivas como capoeira, karatê, jiu-jítsu, corrida e, por meio dessas atividades, conquistou vários amigos. Ele era bem ativo na comunidade surda, assim foi sua infância/adolescência. Por volta dos 10 anos, demonstrou uma certa dificuldade para enxergar algumas coisas, às vezes, ao andar, caia e esbarrava nas coisas, havendo maior dificuldades à noite. Inicialmente, em consultas oftalmológicas, não foi detectada a retinose pigmentar. Ele continuou seguindo suas atividades normalmente. Durante a adolescência, começou a namorar uma surda. Ele, sempre muito envolvido com os “amigos”, que os convidava para atividades sociais e coletivas, saiam, bebiam, dentre outras experiências que podem ocorrer na fase de transição da adolescência para a vida adulta.

No final dos anos 90 e início dos anos 2000, o estudante demonstrou mudança de comportamento. No entanto, a família não conseguia compreender o que estava acontecendo, embora suspeitasse do uso excessivo de substâncias psicoativas e da aproximação dele com usuários. Aliado à alteração comportamental, ele sofreu um acidente de carro, na região central de Brasília, a aproximadamente 35 km de sua residência. Neste acidente, M42 teve ferimentos graves, levando a acompanhamento na rede hospitalar pública por longo período. Após receber alta, começou a demonstrar comportamentos agressivos, uma desordem mental e falas incoerentes. A alteração comportamental foi constatada pela família, porém ele permaneceu por cinco anos sem tratamento. Durante esse período, parou com as atividades vinculadas ao espaço escolar, a namorada e todos os amigos se afastaram, mantendo contato apenas com os membros da família.

A família relata que ele saiu de casa e ficou desaparecido por três dias, tendo sido internado em um hospital psiquiátrico. O retorno à sua casa, sem medicação, e com comportamentos agressivos, levou a família a solicitar encaminhamento para interná-lo novamente, e assim ficou por alguns meses. Após receber alta, agora como doente mental, surdo e baixa visão, a família criou estratégias próprias para lidar com as alterações comportamentais, as quais não incluíam contato com a comunidade surda. Ele viveu durante 16 anos em isolamento linguístico e restrição de contatos sociais. A situação de isolamento mudou no final de 2017, quando a comunidade surda que participa da pastoral do surdo, conhecidos de longa data do M42, relatou a situação dele à pastoral.

A pastoral do surdo localizou o M42 em sua residência e o direcionou para o programa de atendimento aos estudantes surdocegos da Secretaria de Educação do Distrito Federal (SEEDF) , no Centro de Ensino Especial de Deficientes Visuais (CEEDV). Ele foi matriculado no programa de reabilitação, no entanto, em função da distância e pouca rede de apoio, a família desistiu do atendimento. Dessa forma, a pastoral optou por criar um grupo de trabalho voluntário na residência do M42. Participaram do grupo inicial a professora-pesquisadora – autora deste relato, o professor Vavado, a professora Lilian e alguns surdos e surdocegos que já conheciam M42. Posteriormente, houve a oferta de vaga no território da residência do M42, momento em que o trabalho pedagógico especializado passou a ser implementado na SEEDF com a professora na função de guia-intérprete. O trabalho ocorreu com M42 em parceria com a família e a pastoral do surdo, comunidade do território próximo à residência do estudante.

3.2 Procedimento de intervenção

O processo de intervenção teve início no final do ano de 2017, quando alguns amigos surdos da pastoral relataram a situação de um surdocego que vivia em casa “preso” e que precisava de ajuda. Assim, a autora deste relato de experiência foi convidada pela amiga da pastoral para visitá-lo e conhecê-lo. Quando chegamos à residência do M42, naquele momento, primeiro contato, ele não aceitou nosso toque. Tentamos nos comunicar por meio da língua de sinais adaptada ao campo de visão, mas não obtivemos resposta. Utilizamos gestos naturais, mas a compreensão foi muito restrita. Tudo era novo para ele e as pessoas eram desconhecidas. A resistência de contato com estranhos é um comportamento adaptativo funcional esperado e já descrito na literatura (CADER-NASCIMENTO e COSTA, 2005)

Em outro momento convidamos um amigo, Professor Vavado, que possui conhecimento em braille e habilidades em criar, adaptar material e recursos pedagógicos personalizados. Ele aceitou participar desse projeto e abraçou o desafio. Assim, o trabalho de intervenção foi iniciado. Começamos um trabalho em dupla, apresentamos várias possibilidades de atividades, uma delas foi o artesanato utilizando miçangas, sementes, linhas e outros, mas M42 não aceitou. Nesse dia, ele manifestou que queria estudar, ler e escrever, então pensamos em outras estratégias. Conforme suas necessidades, foram elaborados materiais com MDF para começarmos.

Durante a intervenção, organizaram-se algumas atividades pedagógicas que eram propostas uma vez por semana. Inicialmente introduzimos recursos e instrumentos pedagógicos para explorar os sentidos remanescentes (olfato, paladar e toque), bem como exploramos as sensações cinestésicas, apresentando tipos de comunicação receptivas. Aliado a esse processo, priorizamos a aprendizagem do código Braille, construindo possibilidades de interação com os objetos culturais de conhecimento (registro escrito e associação do código braille com o alfabeto manual), por meio dos sentidos remanescentes. A Figura 4 ilustra processos de intervenção em dupla com o M42.

O registro do código braille ocorreu na caixa braille pensada e criada para M42, pelo Prof. Vavado. Buscamos, dessa forma, resgatar os conhecimentos prévios do M42 e introduzimos novas apropriações de conteúdos socioculturais. A Figura 5 ilustra o equipamento utilizado denominado aqui de caixa braille.

A caixa braille é um material didático confeccionado em MDF, placa de alumínio com 12 celas do código braille de seis furos. Dentro da caixa, tem esferas avulsas que são utilizadas para representar cada letra da palavra no código braille. A caixa também tem um dispositivo que, se acionados, as esferas caem em uma caixa interna, possibilitando, assim, novos registros.

Como o atendimento era realizado apenas uma vez por semana, o processo acontecia de forma lenta e ainda tínhamos que esperar que fosse um dia bom para ele, pois tinham dias tranquilos e dias muito agitados, por causa da suspeita de esquizofrenia.

Em um dia de atendimento, cheguei a sua casa e ele estava trancado no banheiro, mas decidi esperá-lo. Esperei exatamente o tempo que ficaria com ele para realizar as atividades propostas. Ele cronometrou exatamente o tempo que ficaríamos juntos e permaneceu dentro do banheiro. Ao sair, percebeu minha presença, então perguntei: O que está acontecendo? O que está sentindo? Ele respondeu: “Estou sentindo dor de dente”. No mesmo momento entrei em contato com o amigo parceiro e solicitei ajuda com um dentista. Todo processo exige uma rede de amigos e pessoas voluntárias, profissionais ou não, que estão dispostos a colaborar. Foi acionada a rede de apoio que conseguiu atendimento, levamos -o ao dentista, no mesmo dia, para uma avaliação. Ao fazer um RX, perceberam que havia uma inflamação na gengiva e era necessário extrair um dente. Na semana seguinte da extração do dente, ao retornar às atividades, ele encontrava-se bem mais calmo, agradeceu por ter ajudado com o dente. Neste dia, a mãe relatou toda vida do filho, agradecendo por tudo, falei a ela que estávamos ali para ajudá-los da melhor forma.

Aqui nestas imagens o estudante demonstrava um comportamento mais tranquilo e aceitava melhor os toques e sinais propostos durante os atendimentos. Em alguns momentos, convidava alguns surdos para interagir, aos poucos foi socializado com outras pessoas (ouvintes, surdos e surdocegos).

As estratégias foram sendo realizadas com o compromisso de um ensino intencional direcionado a ampliação dos recursos de comunicação e dos contatos sociais do participante. Ao finalizar o ano de 2018, percebemos avanços significativos no desenvolvimento emocional, social e cognitivo do participante. Apesar dos avanços, a mãe solicitou indicação de uma clínica psiquiátrica para interná-lo novamente, pois já estava sentindo-se muito cansada e ficava preocupada de não conseguir cuidar dele. Expliquei que, no caso dele, não era indicado e que hoje se evita que pessoas como ele fiquem internadas, pois o convívio com a família e as pessoas de seu território contribuem com o bem-estar e a qualidade de vida. No caso, se ele fosse para uma clínica psiquiatra não teria ninguém para comunicar-se de forma clara, provavelmente ninguém saberia a língua de sinais ou braille, iriam administrar medicamentos, “dopá-lo”, e ficaria deitado o tempo todo. Propus pensarmos em outras soluções para o problema.

Depois de alguns dias, expliquei para família que a melhor opção e, por direito, seria retorná-lo à escola, porém poderia ser um processo longo. Mesmo assim, a família concordou e foi orientada sobre como proceder. Dessa forma, o programa educação ao longo da vida foi a alternativa que encontramos junto à secretaria de educação para atender às demandas dos participantes com vistas a ampliação da sua autonomia, iniciativa e confiança na realização das atividades e na condução da própria existência.

4. Recursos utilizados

Durante o processo de intervenção, utilizamos alguns materiais criados pelo professor Vavado, amigo e parceiro do atendimento educacional especializado. Os materiais facilitaram as mediações desenvolvidas durante as aulas na casa do participante. Por meio desses materiais, conseguimos perceber o desenvolvimento da memória tátil e as lembranças de sua memória visual. Aliado a esses processos, podemos afirmar que o uso dos materiais pedagógicos adaptados possibilitou a ampliação do tempo de concentração e persistência do M42. Dentre esses materiais, destacamos a caixa braille (ver Figura 5).

5. Resultados

Os resultados obtidos consistiram em compreender que cada ser humano é uma criação única. Possuímos uma série de talentos, capacidades e maneiras de aprender. Cada um de nós apoia-se em diferentes sentidos para captar e organizar as informações, que nos aproximam dos objetos de conhecimento. Chamamos a isso de Estilos de Aprendizagem. “É simplesmente o estilo cognitivo que um indivíduo manifesta quando se confronta com uma tarefa de aprendizagem” (GÓMES; TERÁN, 2009)

O estudante melhorou suas habilidades motoras, táteis, de comunicação e demonstrou interesse em querer aprender. Optou-se por comunicar-se por meio da libras tátil, utilizando movimento coativo (mão sobre mão). Resgatou-se o contato e a convivência com a comunidade surda do seu território, consequentemente, foram ampliados e fortalecidos os vínculos sociais e emocionais. Diminuiu a resistência ao toque, tornando-se mais acessível a ele, possibilitando uma comunicação direta, com o desenvolvimento de códigos linguísticos, pois a comunicação não acontece somente de forma verbal, mas, também, na modalidade não verbal, conforme as possibilidades e potencialidades sensoriais e linguísticas de cada pessoa.

Após toda intervenção e mediações pedagógicas e linguísticas, orientações à família, idas e vindas à regional de ensino, conseguimos resgatá-lo para o convívio social e educacional no segundo semestre de 2019. Assim, o estudante foi matriculado na Classe Bilíngue Diferenciada da EJA Interventiva, em uma escola de ensino fundamental anos finais. Durante o primeiro semestre, ele ficou sem guia-intérprete, mas estava interagindo com os colegas e professores, e assim finalizou o ano.

No ano seguinte, fui transferida para ser a guia-intérprete do estudante, aceitei o desafio e começamos novamente a nos encontrar, antes era apenas uma vez por semana, a partir desse momento passou a ser todos os dias. O nosso reencontro enquanto professora na função de guia-intérprete foi motivo de comemoração e alegria. Ele ficou muito feliz com o reencontro. Em um novo começo, com um pé no passado e o outro no presente, então juntamente com as professoras regentes, começamos a pensar em novas estratégias para desenvolver em sala de aula. No entanto, 22 dias depois, tudo parou.

O Decreto do governo do Distrito Federal em março de 2020 estabeleceu medidas de segurança para a saúde e o bem-estar da população, com vistas a prevenir o surto da COVID-19. Assim, fomos proibidos de ir à escola, de sair de casa, estava começando uma pandemia, o estudante voltou ao isolamento que viveu por 16 anos, ficamos quatro meses sem contato. No entanto, em função da condição sensorial dele, eu quebrei alguns protocolos e fui visitá-lo, conversar um pouco sobre o que estava acontecendo, explicar a importância do uso da máscara, do álcool nas mãos, ensiná-lo os procedimentos corretos de higienização das mãos. Ele precisava compreender o que estava acontecendo no mundo e que tinha lhe afetado diretamente. Também pensei em alguns materiais como números em braille, números em relevo, notas de dinheiro (sem valor) em braile, nome dos objetos, móveis e utensílios de casa em braile, imagens dele com a mãe e forma de tangram, para a família desenvolver com ele em casa, pois ainda conseguia visualizar algumas coisas.

Assim, continuamos o segundo semestre de 2020, executando as atividades propostas pelos professores regentes, atividades de matemática, português, educação física, artes e outras. Após a pandemia, o estudante retornou a escola, momento em que foi necessário um novo recomeço, porém eu não estava com ele. Em 2022, nos encontramos novamente como estudante e guia-intérprete, na mesma escola, ainda estava retido na 6ª etapa da EJA. Então começamos a trabalhar com objetivo de avançar para a 7ª etapa, tivemos vários desafios, mas conseguimos. Atualmente, encontra-se na 7ª etapa de EJA Interventiva evoluindo cada dia mais, dentro das suas possibilidades, onde há erros, acertos e mudanças de estratégias.

Suas possibilidades em aprender não se diferem de outras ditas com desenvolvimento normal, somente precisam de um tempo maior para aprender.

Quando fazes o melhor que podes, nunca sabes qual milagre é forjado na tua vida, ou na vida do outro.

Helen kell

“A família é a base de tudo. O apoio que você precisa, as palavras de incentivo, carinho e amor. Não pedem nada em troca, fazem sempre de coração”.

Amanda Thomé

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Reafirma-se a necessidade de mais estudos nessa área com vistas inclusive a fundamentar a preparação de novos profissionais da educação para trabalhar com as pessoas que possuem múltipla deficiência sensorial e estão em processo de envelhecimento. É importante destacar que cada estudante, independentemente de qualquer deficiência, tem um perfil único, com habilidades e dificuldades em determinadas áreas. No entanto, algumas características associadas à surdocegueira merecem a atenção de pais, familiares, professores e profissionais da área, como o aprendizado em um ritmo mais lento e algumas dificuldades ao realizar as atividades propostas

Toda pessoa, criança, adolescente ou adulto deve poder se beneficiar de uma formação concebida para responder às suas necessidades educativas fundamentais. Estas necessidades dizem respeito aos instrumentos essenciais de aprendizagem (leitura, escrita, expressão oral, resolução de problemas) conteúdos educativos fundamentais (conhecimentos, aptidões, valores e atitudes) de que o ser humano tem necessidade para sobreviver. Além disso, desenvolver todas as suas faculdades para viver e trabalhar com dignidade, participar plenamente do próprio desenvolvimento, melhorar a qualidade de existência, tomar decisões esclarecidas e continuar a aprender. (Relatório da UNESCO, p. 107, Citado por MEDEIROS; MORAES e SOUZA, 2008, p. 64).

Podemos concluir que a inclusão escolar é processo educacional inegável e desejado. Sendo uma diretriz constitucional (Art. 208 III), considera-se que ela “ainda não produz uma mudança necessária na realidade escolar”. A diretriz estabelece que as crianças, jovens e adultos com necessidades especiais devem ser atendidas em escolas regulares. Ressalte-se que “esse atendimento deverá acontecer sempre que for recomendado pela avaliação de suas condições especiais” (PNE, 2001, citado por MEDEIROS; MORAES e SOUZA, 2008).


7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CADER-NASCIMENTO, Fatima A. A. A.. Surdocegueira e os desafios da escrita.Curitiba: CRV, 2021. 112p.

CADER-NASCIMENTO, Fatima Ali Abdalah Abdel; FAULSTICH, Enilde. Expressão linguística e a produção escrita de surdocegos. In: MOARA Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Letras. Disponível em: <https://periodicos.ufpa.br/index.php/moara/article/view/3710>. Acesso em: 12 jun. 2023.

HONORA, Márcia; FRIZANCO, Mary L. E..; Esclarecendo as deficiências: Aspectos teóricos e práticos para contribuição com uma sociedade inclusiva.São Paulo, SP: Ciranda Cultural,2008.

LIMA, Niusarete M. de. Pessoa portadora de deficiência: série Legislação em Direitos Humanos. Subsérie Pessoa Portadora de Deficiência. Brasília, DF: Ministério da Justiça, Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, 2001.

MADEIROS, Isabel Letícia; MORAIS, Salete Campos de; e SOUZA, Magali Dias de (Org.). Inclusão Escolar: Práticas e teorias. Porto Alegre, RS: Redes Editora, 2008.

GÓMES, Ana Maria Salgado e TERÁN, Nora Espinosa. Dificuldades de Aprendizagem: Detecção e estratégias de ajuda. Tradução e Adaptação: Adriana de Almeida Navarro. SP, Edição MMIX, Cultural RBL, 2009.

MCINNES, J. M. (org.). A guide to planning and support for individuals who are deafblind. Canadá: University of Toronto Press Incorporated. 1999.

MCLETCHIE, B. A. B.; RIGGIO, M. Competências para professores de alunos com surdo-cegueira. In: Masini, E. F. S. (org). Do sentido… pelos sentidos… para o sentido. São Paulo: Vetor editora, 2002.

ARAUJO, Hélio Fonseca de. Práticas de interpretação tátil e comunicação hática para pessoas com Surdocegueira . Petrópolis, Arara Azul, 2019.


COMO CITAR

ARAÚJO, Marineide de Castro Pinheiro. Os efeitos da intervenção pedagógica no bem-estar de um estudante surdocego com doença mental. In: Sala de Recursos Revista. Brasília, v. 4, n. 2, p. 32-49, Julho – Dezembro, 2023.Disponível em: <>. Acesso em:

 

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