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O ANO DE 2020 E A EDUCAÇÃO NO BRASIL

A charge representa duas crianças estudando em tempo de pandemia e traz o contraste - uma delas tem acesso a todos recursos necessários; a outra não! Reforçando a ideia de desigualdes nas oportunidades.

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Catarina de Almeida Santos – Graduada em Pedagogia, especialista em Gestão da Escola Pública (2000) e Mestre em Educação pela Universidade Federal de Goiás (2002) doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (2008) e Pós-Doutora pela Universidade Estadual de Campinas (2019). Atualmente é professora adjunta da Universidade de Brasília, Coordenadora do Comitê-DF da Campanha Nacional pelo Direito à Educação (CNDE) e Membro do Comitê Diretivo da CNDE.

Contato:

http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4767470U5

RESUMO

O

artigo buscou analisar, de forma breve, o ano de 2020 e seu contexto pandêmico, tentando compreender os desdobramentos das ações desencadeadas, sobretudo, no campo da educação. Para o desenvolvimento da análise, fez-se levantamento de dados em documentos oficiais de órgãos nacionais, organizações internacionais, além de matérias em jornais brasileiros. O trabalho contou com estudo de dados quantitativos e qualitativos, artigos teóricos da área e publicações, sobretudo, da Campanha Nacional Pelo Direito à Educação. Os resultados apontam que 2020 foi um ano em que o Brasil e vários países do mundo enfrentaram dificuldades para garantir educação para a maioria da sua população. Mas, vale ressaltar que, os problemas enfrentados pelos países na pandemia, não foram causados por ela, apesar de terem sido acirrados, são consequências das desigualdades históricas, que perpassam pelas questões econômicas e sociais, de raça e etnia, gênero e orientação sexual, violências múltiplas contra crianças e adolescentes, que resultam em um amplo processo de exclusão e desrespeitos aos direitos humanos fundamentais. No campo da educação, a Pandemia trouxe uma sobrecarga de trabalho para as e os profissionais da educação, que, apesar de todos os limites, se empenharam para manter contato e garantir a educação dos seus e das suas estudantes. Mas, foi também um ano em que, apesar da sociedade compreender a importância da educação e da escola, não foi capaz, sobretudo os gestores, de reconhecer e valorizar os profissionais. Contudo, o ano foi marcado por alguns avanços, como a constitucionalização do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb).

Palavras-chave: Brasil. Educação. Acesso. Pandemia. Fundeb.

INTRODUÇÃO

A pandemia declarada pela Organização Mundial da Saúde, em março de 2020, causada pelo coronavírus, alterou a rotina da população do planeta. O mundo literalmente parou para conter a propagação da Covid-19, que já contaminou, até fevereiro de 2021, cerca de 110 milhões de pessoas e ceifou mais de 2,5 milhões de vidas, em 223 países.

No campo da educação, a pandemia provocou a suspensão das aulas presenciais, cunhou uma nova modalidade educativa, o chamado ensino remoto emergencial e escancarou para o mundo o que educadoras e educadores, muitos pesquisadores e ativistas da causa já sabiam: em um mundo tão desigual, as escolas e suas infraestruturas são instituições vitais para milhões de estudantes no planeta.

As escolas, sobretudo as públicas, possuem importância e diferentes significados para o público que elas atendem. Para alguns, a escola é o espaço da aprendizagem, da socialização, da convivência com os diferentes, de conhecer novas pessoas e fazer amizades, mas, para outros, é muito mais que isso. Para grande parte dos estudantes, a escola é o espaço de proteção contra as múltiplas violências, inclusive contra o trabalho infantil; é onde meninos e meninas possuem o espaço mais adequando para estudar; têm acesso a alimentação nutricional segura, pois é lá que que comem a principal, quando não a única refeição do dia, além de um conjunto de outros insumos que não terão acesso, fora da escola. Assim, para muitos estudantes, a escola não é mais uma possibilidade, mas a única possibilidade que eles têm para mudar de vida ou de sobreviver.  

Mas a escola adquire importância diferenciada, inclusive para o público da escola pública. Em junho de 2018, o adolescente Marcos Vinícius da Silva, de 14 anos, foi baleado pela polícia, no Complexo da Maré. Antes de morrer, nos braços da mãe, ele contou para ela que viu de onde partiu o tiro que o atingiu e perguntou: “Ele não viu que eu estava com roupa de escola, mãe?”, referindo-se ao policial que atirou. Para esse adolescente, a escola deveria ser o escudo de proteção contra a violência do Estado, pois ser estudante, estar com o uniforme da escola, dizia que ele não era bandido e, como tal, não poderia ser alvejado pela polícia.

A pandemia explicitou para a sociedade que a escola, que vem sendo tão atacada, perseguida e desvalorizada, é o espaço da garantia da segurança alimentar, da proteção contra as muitas e múltiplas formas de violência, como abuso sexual, violência física, psicológica e trabalho infantil, além de parte estruturante para funcionamento do mercado, não só formando novos trabalhadores, mas também cuidando dos filhos daqueles que estão inseridos no mundo do trabalho.

Em abril de 1959, Anísio Teixeira, ao responder a pergunta de um jornalista  que lhe indagou sobre a situação do ensino no Brasil, respondeu que se tratava de uma das zonas mais opacas do desenvolvimento nacional. Disse Teixeira:

A escola tem sido quase sempre o último dos refúgios para o preconceito, a rotina, o dogma, o tradicionalismo cego ou os interesses mais egoísticos. Pobre escola! É a mais humilde, a mais mandada das instituições e ao mesmo tempo o bode expiatório de todas as nossas deficiências. Dela tudo se espera e nada se permite. Quanto mais abandonada, mais culpada fica de tudo que nos sucede (TEIXEIRA, 1959, p. 290 )

Mais de seis décadas depois, a pandemia vem mostrando que a afirmação de Anísio Teixeira continua válida, pois ao mesmo tempo que a sociedade brasileira constatou a importância da escola e seus profissionais, também demonstrou que a educação continua não sendo prioridade, que as nossas escolas continuam relegadas a segundo plano e que os profissionais da educação não são valorizados. 

Contraditoriamente, no processo em que pais, mães e responsáveis entenderam que o ofício docente não é para amadores, que as educadoras e os educadores trabalharam como nunca, se reinventaram mais que sempre, utilizaram novos formatos e metodologias de ensino, buscaram todos os meios disponíveis para contactar os seus estudantes, adoeceram, perderam entes queridos, muitos morreram acometidos pela Covid-19, ao mesmo tempo esses profissionais da educação, especialmente os professores, são tachados de preguiçosos e que não querem retomar o trabalho presencial, em plena pandemia, por não gostarem de trabalhar. 

Mas, como afirmou Tom Jobim “o Brasil não é para principiantes”, o ano de 2020 veio nos mostrar que este país é tão singular, que muitos brasileiros tentam tratar de forma simplista questões de alta complexidade, em um país tão diverso, em todos os sentidos que o termo possa carregar. Sim, 2020 trouxe dores, perdas, explicitou desigualdades e exacerbou a exclusão, mas também mostrou a nossa força e contabilizou algumas vitórias. 

RESULTADOS 

A educação antes e na pandemia

O Relatório de Monitoramento Global da Educação 2020, da Unesco, apesar de apontar que a pandemia agravou o quadro da desigualdade educacional no mundo, pois mais de 90% da população estudantil mundial foi afetada como o fechamento das escolas, traz dados que demonstram que a negação do direito à educação não é uma novidade, logo, infelizmente não é um problema somente  da pandemia.  

Segundo os dados do relatório, em 2018, cerca de 258 milhões de crianças e jovens foram excluídos da educação, o que representa 17% das crianças em idade escolar no mundo, e a pobreza foi o principal obstáculo para o acesso à educação, nas últimas décadas. De acordo com o documento, os grupos desfavorecidos são postos a margem dos sistemas educacionais, por meio de decisões de governos centrais, sistemas de ensino e escolas, que levam à exclusão pelo uso de diferentes estratégias, desde estereótipos nos livros didáticos, discriminação na dotação de recursos e avaliações, tolerância à violência e negligência das necessidades.

No Brasil, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – PNAD de 2020, que traz os dados da educação de 2019, ou seja, anterior a pandemia, mostra que as desigualdades de acesso e permanência na educação no país vem gradualmente se agravando. Segundo o levantamento, em 2019, havia 11 milhões de pessoas  analfabetas com 15 anos ou mais de idade.  Os dados da PNAD apontam, ainda, que do universo de jovens de 14 a 29 anos do País, 20,2%  ainda não completaram o ensino médio. Isso significa 10,1 milhões de jovens, 58,3% homens e 41,7% mulheres, que ou por terem abandonado ou nunca terem frequentado, não haviam concluído o nível básico de ensino. Fazendo o recorte de cor ou raça, 27,3% eram brancos e 71,7% pretos ou pardos.

Os motivos para terem abandonado ou não terem frequentado foram, predominantemente, necessidade de trabalhar e falta de interesse, no caso dos homens. Para as mulheres, a falta de interesse, a necessidade de trabalhar e a gravidez foram os mais apontados, além de afazeres domésticos. Esses são problemas típicos de uma sociedade extremamente desigual, na qual os mais pobres começam a trabalhar na idade escolar. Não por um acaso, em 2019, o país tinha 1,8 milhão de pessoas com idade entre 5 e 17 anos em situação de trabalho infantil, número que aumentou significativamente durante a pandemia. Segundo matéria de levantamento do Datafolha, 2020 foi o ano em que 10,8% dos estudantes do ensino médio e 4,6% do ensino fundamental informaram ter largado os estudos, o que representa cerca de 4 milhões de alunos. As razões do abandono são as mesmas de sempre: as desigualdades sociais que desencadeiam em problemas financeiros, falta de acesso a aulas remotas, além de ter ficado sem aula, o que faz com que o problema seja maior entre os mais pobres. Segundo dados da pesquisa, a taxa média de abandono ficou em 10,6% nas classes D e E, contra 6,9% na classe A.

O ensino remoto emergencial, termo cunhado no âmbito da pandemia, foi a modalidade de oferta de modo não presencial, utilizado para dar continuidade ao calendário letivo ou oferecer atividades para que os estudantes permanecessem em contato com os conteúdos escolares, durante o distanciamento social, utilizando-se, sobretudo, de plataformas digitais e, em alguns casos, materiais impressos.

O desenvolvimento do processo educativo escolar, nessa modalidade, trouxe aprendizados, muitos desafios, enorme exclusão e colocou na agenda do dia a problemática da exclusão digital, consequência direta da exclusão social. Os dados mais recentes sobre disponibilidade e uso de equipamentos tecnológicos nos domicílios brasileiros, são da PNAD de 2018 que apontam que o equipamento mais usado para acessar a Internet foi o celular, presente em 99,2% dos domicílios. O microcomputador, segundo meio, só foi usado em 48,1% desses lares. O Tablet foi equipamento de menor uso e o rendimento médio per capita dos que utilizavam tablet para navegar na internet era o dobro do recebido por aqueles que acessaram a rede pelo celular e 37,7% superior ao dos que usavam computador.

A Sociedade Brasileira de Pediatria publicou uma nota de alerta com  recomendações sobre o uso saudável das telas digitais em tempos de pandemia da COVID-19, reforçando recomendações da Organização Mundial da Saúde, sobre como a exposição excessiva à tela pode trazer prejuízos para a saúde das crianças.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

2020 foi ano em que o planeta parou, que os oceanos receberam menos poluição, que hospitais e cemitérios foram triplicados, que muitas vidas foram ceifadas, que o mundo se ajoelhou diante de um vírus, que o muito que se sabe sobre ele ainda é ínfimo perto do que há para descobrir, foi também o ano em que o mundo seu uniu em busca de uma vacina. 2020 não foi um ano que criou contradições, mas que revelou para a humanidade os seus paradoxos e as consequências das suas escolhas.

Foi o ano em que nos questionamos se não estamos vivendo uma distopia, com a banalização da vida, naturalização do autoritarismo, opressão e desesperança, com aniquilamento dos sonhos. Mas, especialmente na educação, nós ousamos sonhar e diante do que parecia impossível, vencemos uma grande batalha: a constitucionalização do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb). Foi uma vitória da sociedade brasileira, de suas educadoras e educadores, demais profissionais da educação, estudantes e ativistas que se uniram e conquistaram esse grande feito.

Tornar o Fundeb permanente (ver mais em acervo da Campanha Nacional Pelo Direito à Educação-CNDE) é colocá-lo no corpo da Constituição e trazer mais possibilidades de garantia do direito à educação. Os dispositivos aprovados na Emenda Constitucional n° 108 de 2020, são mecanismos fundamentais para que a realidade da escola pública brasileira possa tomar outro rumo. A Constitucionalização do Custo Aluno Qualidade- CAQ, mecanismo criado pela CNDE, faz com que tenhamos um parâmetro para cobrar do Estado Brasileiro uma escola de qualidade, que tenha os insumos necessários para garantir as condições do trabalho pedagógico a ser realizado e o direito à educação garantido. Estamos construindo o caminho para que qualquer cidadão desse país possa exigir uma escola padrão CAQ.

Para alguns, a escola é o espaço da aprendizagem, da socialização, da convivência com os diferentes, de conhecer novas pessoas e fazer amizades, mas, para outros, é muito mais que isso. Para grande parte dos estudantes, a escola é o espaço de proteção contra as múltiplas violências, inclusive contra o trabalho infantil


Como citar:

SANTOS,Catarina de Almeida. O Ano De 2020 E A Educação No Brasil. In: Revista Sala de Recursos, v.1 n.1, p. 27 – 33, jan. – abril. 2021. Disponível em:<http://www.saladerecursos.com.br>. Acesso:

REFERÊNCIAS 

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – PNAD Educação 2020. Rio de Janeiro, IBGE, 2020. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros>. Acesso em: 03 de mar. 2021. 

______. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – PNAD. Acesso à Internet e à televisão e posse de telefone móvel celular para uso pessoal 2018. Rio de Janeiro, IBGE, 2018. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/>. Acesso em: 03, mar.  2021. 

SALDANHA, Paulo. Cerca de 4 milhões abandonaram estudos na pandemia, diz pesquisa. Jornal Folha de São Paulo, 22  jan.  2021. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2021/01/>. Acesso em: 03, mar. 2021. 

TEIXEIRA, Anísio. O ensino cabe à sociedade. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro, v.31, n.74, 1959.p.290-298.Disponível em: <http://inep.gov.br/documents/186968/489316/>. Acesso em: 03, mar. de 2021. 

UNESCO. 2020. Global Education Monitoring Report 2020: Inclusion and education: All means all. Paris, UNESCO. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/>. Acesso em: 03, mar.  2021.

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