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ENSINO REMOTO NA SURDOCEGUEIRA: UM ENSAIO ENTRE EXPECTATIVA E REALIDADE


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Voz – Lunna Mara

Bárbara Pereira de Alencar da Rocha – Mestranda em Educação (FE-UnB). Especialista em Educação de Surdos. Pedagoga. Professora na Secretaria de Educação desde 1998. Possui experiência como coordenadora na educação infantil e articuladora do Ensino Especial. Atuou na educação básica, como: intérprete educacional, professora de sala de recursos específica para surdos, professora regente em classe bilíngue de surdos e professora de surdocegos na função de guia-intérprete. Participa dos Grupos de Pesquisas: Estudos sobre Formação e Integração ensino-serviço-comunidade; e do GEFIESCO/UnB: Escritura: Linguagem e Pensamento – TEL/UnB. Possui publicações em congressos nacionais e internacionais. É consultora na área de ensino especializado e ministra oficinas e cursos de formação continuada para professores.

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https://orcid.org/0000-0003-3806-2330

RESUMO

O desafio e a problemática do ensino remoto para surdocegos é apresentada nesse ensaio a partir das aulas síncronas realizadas por uma professora na função de guia-intérprete com dois estudantes surdocegos matriculados em uma escola de EJA do Distrito Federal. O objetivo foi refletir sobre o percurso da aula na modalidade virtual distribuído em quatro situações do ensino: a duração, a plataforma, o conteúdo e a aplicabilidade da língua de sinais e do código braille. Todo o processo foi mediado por instrumentos e ferramentas da tecnologia e por aplicativos de mídias sociais. Relacionou essas situações com o fazer pedagógico e com a relação docente-discente-tecnologia, bem como discutiu questões relacionadas ao novo formato de ensinar e aprender. como discutiu questões relacionadas ao novo formato de ensinar e aprender. Os resultados evidenciaram que as aulas síncronas oportunizaram ao professor-guia a possibilidade de criação no fazer-pedagógico, acolheu novas ações que movimentaram o funcionamento nos espaços e no tempo do currículo e da didática. Concluímos que ocorreu uma distensão no modo de habitar os papéis do professor regente, do guia-intérprete e dos estudantes surdocegos, sendo crucial a parceria com membros da família em todo o processo

Palavras-chave: Aula. Surdocegueira. Pandemia.

INTRODUÇÃO

Com a pandemia da Covid 19, as aulas das escolas públicas da rede de ensino do Distrito Federal foram suspensas em março de 2020, sendo retomadas em 22 de junho por meio de aulas remotas. Diante desse contexto, houve um descompensamento na sociedade e nas prestações de serviço, gerou-se a necessidade de pensar, elaborar, construir adaptações que atendessem às demandas restritivas impostas pelo alto risco de contágio.

A suspensão das aulas presenciais trouxe uma visão límpida e preocupante do impedimento institucional para o ensino aos milhares de estudantes da rede pública de ensino do Distrito Federal. A organização do trabalho pedagógico foi influenciada por condições externas e lançou o ensinar e o aprender de modo abrupto na modalidade virtual, demandando condições materiais e humanas. Os professores e os alunos precisavam estar tecnologicamente equipados improvisando rigidamente o processo educativo que se construía em exigências e expectativas de uma nova estrutura educacional nacional.

Suscitou uma reinvenção pedagógica, totalmente diferente, nesse novo contexto de vida, os professores se viram estimulados e impulsionados a improvisar meios didáticos que contribuíssem com o seu fazer pedagógico. Simulou argumentos muito particulares e completamente novos para um novo modo de compreender, desenvolver e mediar a atividade de docência numa modalidade inédita que precisou driblar as dificuldades de acesso e posse no uso de instrumentos tecnológicos que passaram a assumir um novo tom.

O Plano Nacional de Educação, desde o ano 2001, previa que nos cursos de formação dos docentes contemplasse “[…] o domínio das novas tecnologias de comunicação e da informação e da capacidade para integrá-las à prática do magistério” (p.99). O documento incentiva “[…] ampliar o conceito de educação a distância, em todos os níveis e modalidades de ensino” (p.77). O texto reconhece que o uso da tecnologia não devia restringir-se à EAD e propõe sua utilização como “[…] um instrumento de enorme potencial para o enriquecimento curricular e a melhoria da qualidade do ensino presencial” (p.78).

Apesar dessas orientações constarem há quase duas décadas nos documentos oficiais que orientam a formação de professores, a maioria dos docentes sentiu-se despreparada para o efetivo desenvolvimento do teletrabalho com o ensino-remoto-virtual. Havia algum desconforto na atuação, inúmeros questionamentos que pediam por mais clareza nessa nova identidade profissional que ia pouco a pouco transformando os processos de ensino, as formas de interação entre professor-aluno e o espaço e tempo pedagógicos.

No caso do professor, na função de guia-intérprete, precisou de fazer uma confrontação nos próprios afazeres didáticos. Novos posicionamentos tiveram que ser reconstruídos nas ações do fazer pedagógico: uma negociação consigo e com conhecimento necessitava de passar por uma reflexão sobre como desempenhar função nesse novo contexto que acontecia e como se daria a apropriação dos saberes pelo estudante surdocego no formato de ensino com aulas síncronas. Diante deste contexto, nosso objetivo com este trabalho consiste em discutir as rotas de ensino e aprendizagem construídas durante este período para estudantes surdocegos.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Participaram do estudo dois estudantes surdocegos acompanhados de guia-intérprete que se encontravam matriculados em uma escola de Educação de Jovens e Adultos da Secretaria de Educação do Distrito Federal em classe regular, segundo a política de inclusão da SEDF em segmentos e etapas distintas. O estudante A, sexo masculino, idade de 52 anos, surdocegueira pós-linguística, primeira manifestação cegueira, surdez profunda no ouvido esquerdo e moderada no ouvido direito, decorrente de Diabete. Faz uso do Aparelho de Amplificação Sonora Individual – AASI, bilateral, que permite o acesso à escuta-fala com aproximação. Portanto, possui fala na comunicação expressiva e fala ampliada na receptiva em processo de transição para sistema alternativo de comunicação com base no tato. Encontra-se matriculado na 2ª etapa (2ª série) do 1º Segmento da EJA, em processo de alfabetização. Será identificado no artigo como M52 (sexo masculino seguido da idade).

A segunda participante é surdocega pós-linguística, primeira manifestação surdez profunda congênita, e na fase adulta com baixa visão, síndrome de Usher. Utiliza a Libras em campo reduzido e faz uso de material ampliado para escrita e leitura. Encontra-se na 1ª etapa (1º ano do ensino médio) do 3º segmento. Identificada no artigo como F58 (sexo feminino seguido da idade).

“A organização do trabalho pedagógico foi influenciada por condições externas e lançou o ensinar e o aprender de modo abrupto na modalidade virtual demandando condições materiais e humanas…”

A primeira providência da guia-intérprete foi manter a interação pessoal com os dois estudantes pelo uso do telefone com o estudante com resíduo auditivo em ligações duas vezes na semana – uma na segunda-feira, numa conversa trivial sobre o final de semana, e outra na sexta-feira recordando alguns dos conteúdos estudados anteriormente. Buscou durante as ligações manter um tom informal, evocando a continuação do vínculo, fundamental na surdocegueira entre guia e surdocegos. Ressalta-se que o vínculo com M52 é recente, estabelecido com a matrícula do mesmo na escola há três semestres letivos. 

Com F58, as chamadas de vídeo pelo aplicativo de WhatsApp funcionavam bem e tinham um cunho social com conversas triviais sobre seu cotidiano, ela enfrentava um problema de saúde com internações constantes, o vínculo entre as duas já estava fortificado numa relação de quase uma década. 

Portanto, a manutenção do contato, constitui uma estratégia viável entre professora-guia e o estudante, lembrando que muitas vezes algum membro da família participava para garantir o acesso às informações. Durante esse momento,  foi possível avaliar a habilidade dos estudantes com os aplicativos e o acesso deles às informações veiculadas nos diálogos estabelecidos. Essa estratégia foi fundamental para pensar e planejar as ações de ensino e as adequações necessárias à garantia da acessibilidade ao conteúdo científico.

A segunda ação aconteceu quando houve a convocação para o ensino remoto síncrono pela SEDF. A guia-intérprete pediu uma reunião com a coordenação, a direção da escola e a itinerância da surdocegueira, convocando esses membros para pensar sobre as restrições que seriam impostas ao ensinar e aprender nesse novo formato da aula. 

A finalidade única era propor a transferência dos estudantes à classe bilíngue, considerando que o atendimento estaria com uma vantagem nos procedimentos e nas possibilidades de feitio didático, facilitando o desempenho e a participação dos estudantes para além do atendimento individual.  Essa estratégia foi bem recebida pela direção, coordenação e professores das classes bilíngues e pela itinerante da surdocegueira e os alunos surdocegos foram transferidos da classe regular para a classe de educação bilíngue.

A terceira ação constituiu-se na prática de estabelecer a aula nesses dois novos espaços – a classe bilíngue e o ensino remoto síncrono. Uma pergunta surgiu: O que compete ao guia-intérprete fazer para que os estudantes surdocegos habitem nesse novo espaço metamorfoseado no qual suas características da privação dos sentidos distais se tornaram autoevidentes?

Decidimos primeiramente por não nos desligarmos de recorrer: a) a nossa experiência profissional na função de guia- intérprete, algo pertinente que nos conferia o direito da competência; b) ao convívio, pois conhecíamos os dois surdocegos e sabíamos 

um pouco sobre suas necessidades e comportamentos; c) a generosidade partilhada pela gestão da escola que priorizou a possibilidade do ensino em uma estratégia que assegurou aos estudantes um ambiente mais propício; d) a lucidez que colocou a relação entre docentes suspensa quanto ao papel de comando da sala e das atividades curriculares; e) engajamento mais dinâmico e coletivo na ocupação do fazer pedagógico; f) articulação dos contrastes didáticos entre os perfis dos dois profissionais; g) a dinâmica do ensinar renovando-se ao espreitar a matização e saturamento do estudante surdocego visto como nosso no uso de uma coautoria entre os docentes.

Tratava-se mesmo de uma distensão no modo de habitar os papéis – do professor, do guia e do estudante surdocego – e o sentido físico e de valor dada a inscrição dos termos no que concerne ao espaço e ao tempo da aula e das atividades curriculares. Assim surgiu uma nova pergunta: Como ocupar esse novo espaço que surge como sala de aula e como otimizar o tempo didático no cumprimento do calendário, dos conteúdos e na avaliação que coloca o fazer pedagógico, o ensinar-aprender numa conjuntura alarmante? Assim pensamos em organizar a linguagem do planejamento cobrindo e cumprindo quatro categorias: duração, conteúdo, plataforma e aplicabilidade da língua de sinais e do braille. A prática docente é um exercício diário, que não finda, pois o professor está sempre disposto a renovar sua prática, principalmente traçando novas influências que orientam o seu fazer pedagógico. Considerando essa argumentação, propomos uma organização de ensino de fundo sistêmico, a aula funcionando num tripé: professor-aluno-saberes em uma outra fisicalidade e com instrumento tecnológico que viabilizou o acesso ao conteúdo, no caso, houve inclusive a junção do componente familiar.

A aula foi sendo discutida em uma nova variação, recorreu à noção derridiana de suplemento, intervindo, insinuando e assumindo as opções de acessibilidade e, simultaneamente, de resistência e substituição – os instrumentos tecnológicos que se configuram em modos de utilização individual de facilidade ou de dificuldade ao estudante surdocego. E principalmente como um apesar da argumentação que se faz enviesada na convivência e na alteridade profissional do novo contexto (SANTIAGO, 1976, p. 89).

“Suscitou uma reinvenção pedagógica, totalmente diferente, nesse novo contexto de vida, os professores se viram estimulados e impulsionados a improvisar meios didáticos que não podassem o seu fazer pedagógico”.

No tocante ao desenvolvimento, a aula-virtual foi realizada no mesmo horário da aula presencial, um estudante no matutino e outro no vespertino, estabelecemos uma rotina que configurou o planejamento do ensino substanciado em quatro etapas:

A duração para o estudante do 1º segmento teve 3 horas aulas semanais distribuídas em 3 encontros com dias alternados: segunda, quarta e sexta, dividida em dois momentos coletivos com a condução da aula feita pelos professores regentes contando com a participação de todos os estudantes – surdos e surdocego – e da guia-intérprete. E um encontro individual entre a guia e o surdocego com a participação da professora regente que ministrava as aulas de matemática e língua portuguesa – uma solicitação que veio da professora no anseio de conhecer e conviver com o estudante e aprender sobre a surdocegueira. A estudante do 3º segmento teve encontro individual com a guia-intérprete e por motivo de saúde não participou das aulas com os professores regentes.  

O conteúdo não sofreu nenhuma redução curricular para ambos os alunos, só teve adaptações na apresentação do material didático com ampliação no tamanho, formato, configuração no espaço, contrastes da letra e das imagens destinados à estudante do 3º segmento, sempre acompanhado com vídeos em libras, pescados no Youtube de fontes conhecidas, principalmente advindos da Tv INES. O arquivo de envio desses materiais também teve distinção: a estudante do 3º segmento recebia em PDF e o estudante do 1º segmento recebia uma gravação de áudios, capturando seu acesso no resíduo auditivo e uma apresentação em slides para que a família o acompanhasse em casa com o estudo e o retorno das atividades.      

A plataforma oferecida pela SEDF foi utilizada com êxito nas aulas-encontros, sempre assessorada com o uso do aplicativo WhatsApp que mediava de modo mais ágil a conversa com as famílias e pela praticidade no envio pela guia-intérprete, no recebimento e na utilização mais autônoma pelos dois estudantes.

A aplicabilidade da libras e do braille se constituiu no momento desafiador somente para o estudante do 1º segmento, pois a estudante do 3º segmento necessitou de ajustes que passaram pela repetição na fruição do uso da libras.  O estudante do 1º segmento solicitou um momento mais detalhado na transmissão do conteúdo.  Dessa forma, estabeleceu-se duas etapas e a confecção do material contava sempre com três áudios: 1) explanação reforçando a aula das professoras regentes; 2) descrição da configuração da mão, da disposição espacial e da execução do sinal em libras; 3) emissão da sequência numérica dos pontos que formavam as letras em braille das palavras. E ainda contava com pequenos vídeos caseiros da guia intérprete colocados na apresentação dos slides em PowerPoint, vislumbrando o acesso da família em reforçar os estudos. O atendimento individual trazia em repetição essas estratégias, com o diferencial que permitia o uso pela guia-intérprete em movimentar o recurso visual elaborando correções mais pontuais na aquisição do sinal em libras, além de utilizar o braille digital possibilitando a criação de dispositivo tátil de recordação na composição da palavra.   

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Estas estratégias mostraram possibilidade de criação no fazer-pedagógico e no acolhimento de novas ações movimentando o funcionamento tradicional do currículo e da didática. Trouxe novos gestos de fugas nas propostas das práticas pedagógicas cotidianas sugerindo uma produção mais criativa na montagem das relações na aula. Os processos contornaram a docência num gesto mais coeso pelo atravessamento do inventário do plano de aula em narrativas didáticas mais personificadas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BRASIL, MEC. Plano Nacional de Educação. PNE. Brasília: Inep, 2001.

SANTIAGO, Silviano. Glossário Derrida. Trabalho realizado pelo Departamento de Letras da PUC/RJ. Livraria Francisco Alves Editora S.A: Rio de Janeiro, 1976.

Como citar:


ROCHA, Bárbara Pereira de Alencar da. Ensino remoto na surdocegueira: um ensaio entre expectativa e realidade. In: Revista Sala de Recursos, v.1 n1 p. 50-57,  jan. – abr. 2021. Disponível em:<http://www.saladerecursos.com.br>. Acesso:

ANEXOS

As imagens, a seguir, retratam alguns momentos durante as aulas no ensino remoto e trazem três situações totalmente distintas:

a) O resguardo que a guia-intérprete se colocou para registrar os atendimento feitos na plataforma e no WhatsApp;

b) Organizar um registro para escrituras acadêmicas futuras.

c) Fornecer uma fonte inesgotável de acesso objetivando a melhoria do planejamento, pois as fotografias vieram de print das gravações das aulas feitas na plataforma do Google Sala de Aula.

O estudante na aula coletiva
O estudante na aula coletiva
O sorriso que faz transparecer o conforto e a alegria de retomar as aulas.
O sorriso que faz transparecer o conforto e a alegria de retomar as aulas.
O estudante buscando expressar em sinais  a situação contexto da pandemia em em sua casa.
O estudante buscando expressar em sinais  a situação contexto da pandemia em em sua casa.
O estudante na aula coletiva aprendendo sinais em libras..
O estudante na aula coletiva aprendendo sinais em libras..
A parceria com a família foi indispensável durante o início e continuidade das aulas síncronas.
A parceria com a família foi indispensável durante o início e continuidade das aulas síncronas.
O uso do WhatsApp facilitou uma comunicação mais autônoma.
O uso do WhatsApp facilitou uma comunicação mais autônoma.

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