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Locução – Lunna Mara
SURDOCEGUEIRA E OS DESAFIOS DA ESCRITA
Profa. Dra. Linair Moura Barros Martins
Fatima Ali Abdalah Abdel Cader-Nascimento tornou-se a primeira doutora brasileira na área da surdocegueira em 2003. Suas inúmeras produções tratam de diferentes facetas desse campo de estudo, trabalho e pesquisa, sempre com um olhar pedagógico, mas sobretudo humano, revelando ao público a beleza e os desafios do universo das pessoas com múltiplo comprometimento sensorial que resulta nessa deficiência.
“Surdocegueira e os desafios da escrita” não é apenas mais uma obra da autora. Trata-se de uma reflexão que quebra a liturgia dos estudos da área de deficiência, geralmente presos às características que emergem do quadro biológico e que classificam as pessoas com deficiência pelos comprometimentos físicos, sensoriais ou intelectuais. Ao contrário, a obra em questão ajuda o leitor a lançar um olhar humano e sensível sobre o desenvolvimento das pessoas com privação dos sentidos distais, o que desencadeia “comportamentos e desempenhos linguísticos diferenciados” (p. 51)
Nesta obra, a autora busca, na Linguística, o embasamento para explicitar os processos de aprendizagem da linguagem e da escrita, com foco no ensino da língua portuguesa como segunda língua para estudantes surdocegos. Essa perspectiva tira o estudo da surdocegueira dos recônditos povoados apenas pela deficiência, levando-o para o âmbito de uma ciência que produz conhecimentos e traz explicação aos fenômenos humanos, independente da condição biológica que caracteriza os sujeitos.
Enriquece, desta forma, a Linguística, enquanto área de estudo, por legitimar os processos linguísticos específicos dos surdocegos como manifestação humana e não como processos disruptivos ou de menor importância, mas como capacidade linguística humana. Também enriquece o campo de estudos da deficiência por ancorar-se na Linguística, iluminando, com conceitos canônicos, o desenvolvimento da linguagem em contexto de deficiência.
A combinação dos fundamentos linguísticos com a teoria histórico-cultural resulta na análise de desempenhos linguísticos e cognitivos com a entrada em cena, de fatores sociopragmáticos, referentes ao ambiente, ao entorno da pessoa surdocega, e às relações que são estabelecidas na interação com os outros, construindo o contexto social que constitui terreno fértil para o desenvolvimento da linguagem.
A tessitura feita pela autora possibilita o contato do leitor com processos de aquisição/aprendizagem da linguagem diferenciados, signos linguísticos objetivados em formatos e suportes também diferenciados, para contornar as barreiras fisiológicas encontradas pela manifestação expressiva e receptiva, e possibilitar, para o sujeito, a construção dos mesmos significados socialmente elaborados que facultam sua inserção no mundo. Dessa forma, o desenvolvimento da linguagem é o desenvolvimento da consciência pelo qual o sujeito se torna capaz de atuar no mundo, compreendendo os seus valores, compartilhando seus significados e aprendendo comportamentos socialmente aceitos.
Trata-se de um livro de conteúdo educacional, mas que deve ser lido por todos os que se interessam pela beleza da condição humana nas mais diversas manifestações, uma vez que promove a descoberta de universo muito fractal no sentido das inúmeras ramificações que expressam as singularidades, em razão dos impedimentos de natureza sensorial combinados com sistemas linguísticos.
Cader-Nascimento sistematiza casos reais, representando suas condições e acaba por propor um sistema de classificação bastante elaborado, combinando muitos fatores das condições sensoriais e linguísticas que resultam em perfis singulares: pessoas surdocegas pré e pós-linguísticas, pessoas surdas que ficaram cegas, pessoas cegas que ficaram surdas, sistemas de expressão e de recepção baseados no signo linguístico. Sim, porque existem outros sistemas sígnicos baseados em figuras, gestos ou objetos que a autora não tratou nesta obra em razão do foco linguístico que tem o texto.
As categorias criadas constituem um excelente referencial metodológico que pode ser utilizado por professores e pesquisadores, em estudos, pesquisas e definição de propostas pedagógicas. Podemos dizer que esta é mais uma das grandes contribuições da autora ao campo de estudo.
Ao tempo em que realiza a classificação, a autora expõe o impacto das condições apresentadas para o ensino, bem como os recursos humanos, materiais e tecnológicos necessários para o desenvolvimento acadêmico desses alunos, com foco no aprendizado de um sistema linguístico. Referenciado desta forma, o trabalho possibilita a construção de estratégias pedagógicas que serão muito úteis para professores de alunos com surdocegueira.
O leitor fica absorvido pela classificação, tentando diferenciar e antecipar as condições sensoriais e linguísticas por trás de cada sigla empregada, bem como sua localização na tabela: mais à direita, à esquerda, em cima ou embaixo. Um conselho a quem está no primeiro contato com a surdocegueira é fazer anotações para não misturar os conceitos, pois expressão e recepção linguística são altamente variáveis a depender da condição das pessoas surdocegas e das oportunidades de desenvolvimento que experienciaram.
As múltiplas possibilidades de sistemas e condições linguísticas compartilham com os leitores a realidade de um mundo pouco conhecido e que tantos desafios apresenta, em especial para a escola e para os educadores, entretanto, ao mesmo tempo, proporciona encantamento por possibilitar o reconhecimento da capacidade humana para um desenvolvimento criativo mesmo com impedimentos tão significativos e necessitando de suportes substanciais.
O que se percebe é que a autora não apenas aplica os pressupostos da perspectiva histórico-cultural quanto à relação pensamento e linguagem, mas oferece, pelo estudo do desenvolvimento da linguagem na surdocegueira, uma oportunidade para que o leitor possa vislumbrar especificidades que não ficaram disponíveis no estudo original de Vigotski. Neste ponto, mencionamos, conforme citado pela autora, como a ausência de um sentido distal modifica a forma de aquisição/desenvolvimento da linguagem, dos valores associados à língua e dos comportamentos socialmente aceitos. Demonstrando que a dimensão da linguagem é uma capacidade humana, desenvolvida no contato social, que não pode ser compreendida ou estudada apenas como língua ou comunicação, mas como um poderoso elemento constituinte do sujeito.
O livro está dividido em oito capítulos, desdobrando a temática no desenvolvimento da educação na surdocegueira, seguida pela abordagem dos diversos critérios estabelecidos no arcabouço jurídico para elegibilidade da pessoa com surdocegueira para o ensino especializado até entrar nos aspectos que serão relevantes para a compreensão e discussão da dimensão linguística, juntamente com os aspectos objetivados no signo linguístico.
Os processos de elaboração do significado também são esquadrinhados pela autora com a ajuda da perspectiva funcionalista do signo de Pierce. Nesse contexto, a autora oferece elementos fundamentais para o desenvolvimento das trocas comunicativas e simbólicas, instrumentalizada pela abordagem coativa de Van Dijk que ressalta o papel do professor, do guia-intérprete ou do parceiro de comunicação na condução do aluno nessa jornada de desenvolvimento.
Os quatro capítulos dedicados à exploração dos aspectos linguísticos culminam na abordagem dos processos de escrita, com a apresentação de textos escritos por pessoas dos diferentes perfis descritos pela autora, cujas análises buscam estabelecer relações entre as condições sensório-linguísticas e as produções. Particularmente, quanto à apresentação dos textos, a autora oferece aos leitores categorias de análise muito produtivas que podem ampliar o olhar dos professores para o texto dos alunos com condições sensoriais que dificultam a aquisição natural da linguagem.
Além do olhar diferenciado para o texto do aluno, a autora chama a atenção sobre as diferentes metodologias que podem ser adotadas a depender das condições do sujeito real que se constitui pela severidade das perdas sensoriais e pelos sistemas linguísticos que adota.
O livro tem potencial para apoiar professores e o público na construção de mediações orais-auditivas, visuais-imagéticas e dinâmico-estáticas, táteis para estabelecer relações entre o corpo e os objetos da aprendizagem, cumprindo o objetivo de inserir sujeitos concretos em culturas singulares pela apropriação do conhecimento acumulado pelo seu grupo social.
Compreender como as pessoas com deficiência se relacionam com a língua e como se constituem linguisticamente envolve o exercício da alteridade, pois o ato de compreender pressupõe a reelaboração de concepções sobre esse processo. Esse exercício certamente nos tornará mais capacitados para adequar a nossa prática, adotar objetos, estratégias e instrumentos pedagógicos que possibilitem a inclusão de todos os alunos. É um processo difícil, mas inadiável. Que bom que esta leitura nos conduz por um caminho mais fértil, para uma prática pedagógica adequada e para uma vida cidadã inclusiva.
Profa. Dra. Fatima Ali Abdalah Abdel Cader-Nascimento e Profa. Mestra Bárbara Pereira de Alencar da Rocha,