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EDUCAÇÃO SENSORIAL NA SURDOCEGUEIRA


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Locução – Lunna Mara

Fatima Ali Abdalah Abdel Cader – Doutora em Educação Especial pela UFSCar. Mestre em Educação.Psicopedagoga. Especialista em Português como Segunda Língua para Surdos. Pedagoga. Possui experiência profissional na educação de pessoas com deficiência e com necessidades especiais do ensino básico ao superior. Autora de livros, capítulos de livros, artigos, trabalhos em congressos nacionais e internacionais. Colaboradora do Centro de Desenvolvimento do Potencial Humano – CPH-DF. Consultora e ministra palestras e oficinas sobre ensino especializado.

Contato:

http://lattes.cnpq.br/9235531902125074

https://orcid.org/0000-0002-0662-1428

RESUMO

O objetivo do artigo é discutir sobre o processo de constituição das habilidades tipicamente humanas como decorrentes das relações sociais. Enfatizamos o contato humano e as experiências corporalmente vivenciadas no processo de aprendizagem na perspectiva interacionista. A discussão articula a filogenia, ontogenia e a cultura em processos de desenvolvimento em condições sensoriais específicas: surdocegueira na primeira infância. Os resultados mostram que as estruturas herdadas (filogenia), o movimento espontâneo e ativo do sujeito e o ambiente físico e humano potencializam os processos de apropriação da cultura. Conclui-se que as experiências corporalmente vivenciadas constituem uma forma de ampliar a aprendizagem com benefícios na aquisição de características humanas.

Palavras-chave: Experiências sensoriais. Pessoa com deficiência. Ensino.

INTRODUÇÃO

O processo de desenvolvimento humano ocorre por meio da interação constante entre um corpo ativo e um ambiente físico, social e histórico. Assim, em uma perspectiva interacionista, seja no ponto de vista genético-funcional proposto por Piaget (2011), ou na psicogenética, biológica, sociocultural e afetiva de Wallon (1975), ou ainda, na visão cultural, social, histórica e linguística de Vygotski (1997), ocorre uma interação constante da tríade sujeito, conhecimento e ambiente. Os três autores têm em comum a perspectiva da interação entre o corpo e o ambiente, a qual ocorre, inicialmente, por meio de recursos pautados na nossa herança filogenética. Ao longo do desenvolvimento, cada um dos autores faz um recorte com ênfase no pensamento, no afeto-motor, na linguagem, na construção epistemológica de cada concepção.

Assim, todo ser humano ao nascer possui uma programação aberta para se tornar humano. Lembrando que nós não nascemos humanos, nós nos tornamos humanos no contato com outros da mesma espécie. Nossa programação é aberta para a aprendizagem e para o desenvolvimento. Casos de abandono de recém-nascido, como das meninas lobo Amala e Kamala, na Índia, elas “[…] são da espécie humana pelas suas características genéticas universais que as evidenciam. […] sem o conhecimento cultural e da socialização o Homem comportar-se-ia como um verdadeiro animal não tendo conhecimentos”. (ROCHA, 2010, p. 5 apud FREITAS e ARBOLEYA, 2017, p.2). Assim, a ausência do contato com membros da mesma espécie redirecionou os processos de aprendizagem e desenvolvimento.

Os comportamentos determinados geneticamente se manifestam como uma resposta natural e automática do organismo a um estímulo sem que haja experiência prévia. Por exemplo: sugar, emitir sons, contrair e relaxar os músculos, preensão global palmar (ato de agarrar, apertar um objeto), preensão plantar (ao ser tocado, os dedos do pé assumem a posição de garra), cutâneo-plantar extensor, mão-boca entre outros. Todos estes comportamentos são inatos, estão presentes no nascimento, conforme destaca Wallon (1975). São recursos que permitem ao recém-nascido estabelecer as primeiras interações com o ambiente, momento em que caberá ao cuidador promover situações de confiança por meio do vínculo afetivo.Neste contexto, todos os recursos estão ajustados intrinsecamente para que possa sentir o mundo, independente da condição sensorial do recém-nascido.  Aliadas à filogenia, as características genéticas herdadas da espécie são abordadas no estudo de Paul Ekman (2011), na década de 60. Ele investigou o caráter universal das emoções por meio de um estudo com povos tribais da Nova Guiné, sem familiaridade com os hábitos ocidentais. Os resultados evidenciaram seis expressões universais: medo, raiva, surpresa, prazer, nojo e tristeza. Destas, a mais universal é o sorriso, segundo Bryson (2020, p. 80) “Nunca foi encontrada uma sociedade que não retribua a um sorriso.”  Das demais, o medo e a surpresa não podem ser diferenciados sem conhecermos o contexto que as provocou.

Assim, todo ser humano ao nascer possui uma programação aberta para se tornar humano.

Pelos padrões filogenéticos, herdados, as seis emoções básicas estão presentes nas pessoas independente da classe, etnia, religião, condição sensorial, física, intelectual ou mental. Estes padrões associados às reações reflexas constituem os processos elementares do desenvolvimento psicológico que permitirão aos recém-nascidos estabelecerem contato com o coletivo. Ao chorar e alguém aparecer e isso se repetir, a criança aprende a requisitar a presença do outro. Cabe ao coletivo dar significado às reações e manifestações do bebê. As relações sociais estabelecidas com o coletivo constituíram-se na base do desenvolvimento das funções mentais superiores, conforme apontam os estudos de Vigotsky (1997). Resta saber como ficam as interações sociais na ausência total ou parcial da audição e da visão. Será que essa condição pode gerar atrofia das experiências corporalmente vivenciadas? Passaremos a abordar esse processo mediante a defesa da demanda do ensino especializado e direcionado para o resgate delas.

DESENVOLVIMENTO SENSORIAL NA PRIMEIRA INFÂNCIA

Passaremos agora a abordar o ensino de surdocegos ou crianças com deficiência com o objetivo de evidenciar que independente da presença ou não da deficiência nossa meta enquanto adulto, profissionais comprometidos com o fluxo do desenvolvimento é incentivar a exploração do ambiente físico, as pessoas, os objetos e proporcionar experiências que despertem os sistemas sensoriais. No caso da audição, aprender a ouvir palpitações do coração, perceber a respiração do outro, as vibrações de instrumentos, do olfato, discriminar cheiro agradável e desagradável; quanto ao paladar distinguir sabores e texturas de alimentos, utilizar o tato na identificação e interpretação de nós mesmos e do outro; quanto à cinestesia, perceber e antecipar o movimento do corpo; na propriocepção estar atenta à capacidade de perceber o próprio corpo. Quanto ao sistema vestibular que permite o sentido de orientação e equilíbrio, a labirintite expressa a alteração deste sistema sensorial. O sistema da mecanorrecepção refere-se à capacidade motora de dar resposta aos estímulos, quem tem artrite reumatoide possui alteração nesse sentido. Estes são alguns dos sentidos que procuramos destacar neste artigo, os quais exemplificaremos com algumas experiências corporais na educação precoce que vivenciamos com os estudantes.

RESULTADOS E DISCUSSÃO DAS INTERVENÇÕES NA SURDOCEGUEIRA

Na década de 90, me deparei com uma aluna com 3 anos, do sexo feminino, surdocega total com atraso no desenvolvimento neuropsicomotor, matriculada na educação precoce. Na época, a mãe me procurou e agradeceu por ensinar a filha a sorrir. A única coisa que fiz em termos pedagógicos foi viabilizar o toque (ação ativa conjunta e com significação) da criança na minha face durante a interação intersubjetiva, com expressões distintas de satisfação (rosto e lábios abertos relaxados) e insatisfação (rosto e lábios franzidos e tensos). As expressões eram realizadas de acordo com o contexto vivenciado na aula e em parceria com a mãe. Até hoje me questiono se a criança perdeu ou se estava latente a habilidade de sorrir (inata) em função das características das interações estabelecidas e da ausência de feedback do outro. Lembrando que no filme “O milagre de Anne Sullivan” há uma cena na qual a professora utiliza a técnica do toque da face na educação de Helen Keller.

Em relação ao processo de aprendizagem da antecipação do movimento, capacidade motora de dar resposta ao estímulo e a manutenção do equilíbrio do corpo, abordaremos o caso de uma criança com surdocegueira total, com idade de 3 anos, que gostava de brincar no balanço duplo infantil. Porém, ela sentava e não mantinha o comportamento de segurar no apoio. Diante desse desempenho, estimulamos a criança a segurar nas hastes. Durante a brincadeira, toda vez que ela soltava as mãos das hastes, o balançar era interrompido. O professor direcionava as mãos da aluna para as hastes. Para tanto, associava três sistemas sensoriais da aluna (tato, cinestesia e mecanorrecepção) e repetia três toques consecutivos e co-ativos de agarrar e segurar as hastes. Após os comandos e a manifestação do desempenho esperado, o brincar recomeçava.

Diante da repetição cotidiana dessa rotina de comunicação multissensorial, a criança aprendeu a sentar e segurar nas hastes, posteriormente transferiu esse desempenho para outros brinquedos com o balanço individual suspenso, o brincar no gira-gira, a posição correta na barra de direção do velotrol (Figura 1). Neste caso, ocorreu a aprendizagem da antecipação do movimento, capacidade motora de dar resposta ao estímulo e à manutenção do equilíbrio do corpo. Atividades como essas viabilizam orientações de como usar os recursos do próprio corpo para ganhar autonomia e confiança em si mesma.

Outra situação, o reconhecimento da face humana  para a percepção das características específicas das pessoas. O processo consiste em realizar o sinal de homem no rosto da criança de maneira devagar, para não a assustar. Repetir a ação três vezes e conduzir a mão da criança para explorar o rosto masculino. Neste momento, a criança está livre para realizar o rastreamento tátil (cabelo, face, olho, nariz, boca, orelha). No caso da aluna, ela, naturalmente, se prendeu à percepção da barba do rosto, fixou no áspero e realizou o movimento descendente da face em direção ao queixo, conforme ilustra a Figura 3. Ao explorar a face feminina, a mão da aluna realizou o rastreamento, mas não atingiu a linha do queixo. Assim a aluna manifesta um comportamento discriminativo com as mãos diante do rosto masculino e feminino.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As vivências corporalmente sensoriais, com comunicação multimodal, presença de surdocegos adultos, membro do grupo familiar e o professor com habilidades e competências para orientar os processos de ensino ampliam as possibilidades de aprendizagem. O surdocego como qualquer outra pessoa possui movimento espontâneo e ativo voltado para a descoberta do mundo, para tanto necessita de um ambiente seguro. Cader-Nascimento (2021) lembra que a surdocegueira é uma condição multissensorial que altera os padrões de input visual e auditivo, o que, consequentemente, altera o processo de acesso acidental às experiências. O ouvinte consegue ao mesmo tempo realizar naturalmente dois inputs (ver e escutar a “coisa”). O surdo realiza um input (vê a “coisa”) e o cego (escuta). Já o surdocego precisa aprender a explorar pelo sistema háptico a “coisa”, isto é, obter informações de temperatura, 

As relações sociais estabelecidas com o coletivo constituíram-se na base do desenvolvimento das funções mentais superiores…independente da presença ou não da deficiência nossa meta enquanto adulto, profissionais comprometidos com o fluxo do desenvolvimento é incentivar a exploração do ambiente físico, as pessoas, os objetos e proporcionar experiências que despertem os sistemas sensoriais

pressão, vibração, textura, consistência e peso. Nesse processo, pele, músculos e tendões entram em ação de forma conjunta. Sozinho, ele não consegue criar estratégias para entrar em interação com o objeto do conhecimento.  Portanto, estejamos dispostos a realizar essa jornada de mãos dadas rumo a novas descobertas, nas quais as experiências corporais se tornem imprescindíveis para potencializar a aprendizagem e o desenvolvimento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRYSON, Bill. Corpo: um guia para usuários. São Paulo: Companhia das Letras, 2020

CADER-NASCIMENTO, Fatima Ali Abdalah Abdel. Surdocegueira e os desafios da escrita. Curitiba: CRV, 2021 (no prelo).

EKMAN, Paul. A Linguagem das Emoções. 1. ed., São Paulo: Trad. SZLAK, Carlos.  Lua de Papel, 2011. 288 p.

FREITAS, Djéssica; ARBOLEYA, Valdinei. Educação e Sociedade: breves reflexões sobre a socialização de crianças selvagens. In: Anais do 13 ENCITEC. Disponível em: <https://www.fasul.edu.br/projetos/app/ webroot/>. Acesso em 04, mar. 2021.

RODRIGUES, Luiza Silva; ROBLE, Odilon José. Educação dos sentidos na contemporaneidade e suas implicações pedagógicas. In: Pro-Posições, v. 26 n. 3 Campinas Set./Dez. 2015.Disponível em:<https://doi.org/10.1590/0103- 7307201507810>. Acesso em: 02, fev. 2021.

PIAGET, Jean William Fritz. Seis estudos de Psicologia. 25a.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011.

VYGOTSKI, Lev Semionovitch. Obras Escogidas V. Fundamentos de Defectologia. Madrid: Visor, 1997. 

WALLON, Henri Paul Hyacinthe. Psicologia e educação da infância. Lisboa: Estampa, 1975.

Como citar


CADER-NASCIMENTO, Fatima Ali Abdalah Abdel.  Educação Sensorial Na Surdocegueira. In: Revista Sala de Recursos, v.1 n.1, p. 20 – 26, jan. – abril. 2021. Disponível em:<http://www.saladerecursos.com.br>. Acesso:

FIGURAS

Figura 1: Aprendizagem do uso do velotrol. A criança manteve a mão no guidom e equilíbrio no brinquedo. Necessitou de orientação do contato da professora para manter o pé no pedal, por meio do contato mão-pé. A corda amarrada na ponta da barra de direção, constitui-se em um referente para a mão. A brincadeira envolveu momentos de pedalada com e sem apoio.

Figura 1: Aprendizagem do uso do velotrol. A criança manteve a mão no guidom e equilíbrio no brinquedo. Necessitou de orientação do contato da professora para manter o pé no pedal, por meio do contato mão-pé. A corda amarrada na ponta da barra de direção, constitui-se em um referente para a mão. A brincadeira envolveu momentos de pedalada com e sem apoio.

Figura 2: O uso da colher. A criança leva o cabo da colher à boca, padrão comum. A orientação consistiu no ensino da posição correta da colher e sua função. A mão direita da criança segurou o cabo da colher e a mão esquerda foi conduzida a explorar a concha. Quando a criança realiza o rastreamento, é importante o professor pressionar três vezes a mão na concha para fixação do estímulo. A criança mostra-se atenta e persistência na atividade, que é observada e realizada pelos membros da família.

Figura 2: O uso da colher. A criança leva o cabo da colher à boca, padrão comum. A orientação consistiu no ensino da posição correta da colher e sua função. A mão direita da criança segurou o cabo da colher e a mão esquerda foi conduzida a explorar a concha. Quando a criança realiza o rastreamento, é importante o professor pressionar três vezes a mão na concha para fixação do estímulo. A criança mostra-se atenta e persistência na atividade, que é observada e realizada pelos membros da família.

Figura 3: Criança surdocega total, 1 ano e 8 meses, no rastreamento do rosto humano. Nota que a mão direita apresenta o sentido descendente, ao chegar ao queixo ela retoma a exploração, de forma atenta e concentrada na assimilação das informações do outro.

Figura 3: Criança surdocega total, 1 ano e 8 meses, no rastreamento do rosto humano. Nota que a mão direita apresenta o sentido descendente, ao chegar ao queixo ela retoma a exploração, de forma atenta e concentrada na assimilação das informações do outro. 

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