Fatima Ali Abdalah Abdel Cader-Nascimento: concluiu o doutorado em educação especial (educação do indivíduo especial) pela Universidade Federal de São Carlos. possui experiência docente na educação básica e superior, publicação em periódicos especializados, trabalhos em anais, capítulos de livros e livros. orienta trabalhos de conclusão de curso, iniciação científica, monografias de especialização, com participação em bancas de qualificação e de defesa de mestrado e doutorado. atua na área de educação, com ênfase em educação especial, desenvolvimento da linguagem e aquisição linguística em condições específicas, processo de ensino e aprendizagem da educação básica ao ensino superior.
- Doutora em Educação Especial – UFSCar.
- Professora-aposentada da SEEDF
- fatimacader167@gmail.com
- http://lattes.cnpq.br/9235531902125074
- https://orcid.org/0000-0002-0662-1428
1. RESUMO
O presente artigo objetiva discutir os conceitos dos aspectos culturais, linguísticos e identitários na constituição da pessoa com surdez e surdocegueira e seus efeitos na prática de ensino intencional. Nesse sentido, o artigo resgata que a presença da deficiência ou de um transtorno funcional ou específico não é determinante do humano, mas os limites impostos nos espaços socioculturais são condicionantes para os processos restritivos de desenvolvimento das potencialidades humanas. Dessa forma, ao longo do texto são apresentados argumentos que evidenciam que a deficiência sensorial, não torna a pessoa melhor ou pior, mas marca uma distinção entre elas. Nesse sentido, defendemos que a diferença demanda por acolhimento, cuidado e respeito por todos, em especial pela comunidade escolar e sociocultural da qual pertencemos.
Palavras-chave:
Deficiência sensorial. Cultura. Identidade. Língua de sinais.
2. INTRODUÇÃO
Neste texto, vamos estudar os aspectos culturais, linguísticos e identitários desenvolvidos no âmbito das ciências humanas, entre elas a antropologia, uma das mais significativas para a compreensão da nossa condição humana. Abordaremos argumentos para explicar a pessoa enquanto ser ativo, histórico, social e, eminentemente, cultural. Assim, discutiremos acerca da presença ou ausência da percepção auditiva na existência humana, conforme destaca Montesquieu (apud BRASIL, 2002, p. 36) “[…] a humanidade poderia existir sem a audição, sem o paladar e sem o olfato, quer dizer, sem nenhuma noção do ruído, do sabor e do odor. […]”. Assim, a surdez não torna a pessoa melhor ou pior que o ouvinte, mas diferente. Postura que vai contra os paradigmas arcaicos pautado nas restrições de surdos, na defesa de que os limites se encontram no ambiente e não na pessoa. Defendemos aqui o modelo sociocultural, um olhar antropológico e cultural da surdez.
Dito isso e tendo como pano de fundo a surdez, nosso objetivo com consiste em: a) evidenciar que existem muitas formas para conceituar a cultura; b) discutir o impacto do contexto histórico e científico na diversidade dos conceitos de cultura e os seus efeitos na surdez1 enquanto diferença, experiência visual, identidade multifacetada; c) exemplificar processos da cultura surda distintos da cultura ouvinte; d) evidenciar a importância da cultura na constituição identitária dos surdos e que as regras, padrões culturais são criados para garantir a cidadania da comunidade surda.
Assim, dando prosseguimento ressalto que a cultura é o modo de ser e de viver do humano. Cultura se distancia da determinação biológica. Portanto, buscaremos evidenciar o conceito de cultura do ponto de vista da antropologia e seus impactos para a nossa atuação como professores de estudantes cuja característica básica é a diferença sensorial, física, mental, intelectual, linguística, comportamental, marcada por transtornos funcionais específicos e atravessados pela intersetorialidade de estruturas sociais e culturais.
Historicamente ao estudarmos a natureza da cultura podemos verificar que no século IV antes de Cristo, Confúcio, já defendia que a natureza das pessoas, suas necessidades de reconhecimento, amor, cuidado, pertencimento são as mesmas, mas os seus hábitos, os modos de comportamentos existentes são diversificados. Para Montaigne (1533-1572) pondera que cada pessoa considera errado o que não se pratica no seu território, no seu grupo social, na sua comunidade.
Segundo Laraia o antropólogo inglês Edward Taylor foi o primeiro a formalizar o conceito de cultura, o qual consiste em: “[…] todo o complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade” (TAYLOR apud LARAIA, 2007, p. 25). Esse conceito prevaleceu até o século XX, a partir do qual teremos uma diversidade de conceitos, abordaremos alguns.
1 A surdez é uma diferença, uma construção histórica e social, efeito de conflitos sociais, ancorada em práticas de significação e de representações compartilhadas entre os surdos.”
As pesquisas do antropólogo americano Alfred Kroeber (1876-1960 apud LARAIA, 2007) possibilitaram a diversificação e a ampliação da formulação do conceito de cultura em total oposição à dimensão biológica. Para Kroeber o comportamento e o desempenho do homem vão além das limitações orgânicas, pois o homem é um ser que aprende nas relações que estabelece com o ambiente físico e humano. Nada no humano é determinado geneticamente, mas somos o efeito das relações e mediações que estabelecemos com os outros no nosso contexto imediato. Para discutir a diversificação do conceito de cultura, Kroeber utilizou-se do processo de análise comparativa entre animal e ser humano criados em condições distintas de suas origens. Assim, argumentou que um cão criado por gatos, sempre será um cão em função da determinação genética (aspecto filogenético da espécie), mas um recém-nascido de família francesa criado por chineses irá aprender com o meio os hábitos e costumes veiculados em seu contexto e não os vinculados à família de origem. Assim, o argumento de Kroeber parte do desenvolvimento do recém-nascido proveniente de um meio sociocultural específico e que é adotado por outra cultura. Com isso o autor evidencia que o processo de socialização é o fator crucial no desenvolvimento humano, nós nos tornamos humanos e não a determinação genética.
Laraia (2007, p. 25) discute que “[…] não basta a natureza criar pessoas altamente inteligentes, isto ela faz […] mas é necessário que coloque ao alcance desses indivíduos o material que lhes permita exercer sua criatividade de uma maneira revolucionária. Cérebro privilegiado não basta.” Nesse contexto, Geertz (1973) sugere que não existe natureza humana independente da cultura. Pense no caso das pessoas surdas/surdocegas filhas de pais ouvintes e naqueles surdos/surdocegos filhos de famílias surdas, qual o contato linguístico dessas duas realidades culturais distintas no desenvolvimento da identidade do sujeito? Qual o impacto na constituição da subjetividade da convivência em um ambiente sem barreira de acesso às informações? Como ocorre o desenvolvimento cultural, linguístico e identitário em um meio no qual todos se apropriam das informações pela via visual e o outro no qual a maioria apreende e percebe o mundo pela audição?
A esse respeito Padden e Humphies (1999 apud BRASIL, 2002) que as pessoas surdas de famílias surdas, não desenvolvem o sentimento de perda auditiva, mas são levados pelo contexto das relações a descobrir o universo da surdez e as especificidades do mundo ouvinte. Os autores fazem referência ao depoimento citado por Perlmutter (1986 apud BRASIL, 2002, p.32) o qual descreve o contato de Sam Supalla, surdo e sua interação com uma vizinha, ouvinte, ambos com idades próximas. Ele descreve que:
“[…] ela era legal, mas esquisita: ele não conseguia conversar com ela como conversava com seus pais e irmãos mais velhos. Ela tinha dificuldades de entender gestos elementares! Depois de tentativas frustradas de se comunicar, ele começou a apontar para o que queria ou, simplesmente, arrastava a amiga para onde ele queria ir. Ele imaginava como deveria ser ruim para a amiga não conseguir se comunicar […] um dia, a mãe da menina aproximou-se e moveu seus lábios e, como mágica, a menina pegou sua casa de boneca e moveu-a para outro lugar. Sam ficou estupefato e foi para sua casa perguntar a sua mãe sobre, exatamente, qual era o tipo de problema da vizinha. Sua mãe lhe explicou que a amiga dele, bem como a mãe dela, eram ouvintes e, por isso, não sabiam sinais. Elas ‘falavam’, moviam seus lábios para se comunicar com os outros”.
Observe-se que nessa história a criança surda em ambiente cuja família é predominantemente surda não desenvolveu o sentimento de perda de uma função sensorial, muito menos do conceito de inferioridade ou dificuldade de acesso às informações do ambiente. Nesse caso, verificamos a busca de alternativas nas próprias interações de romper com as restrições do ambiente. Esse é o sonho da inclusão de defender e propor ações segundo o desenho universal, acessíveis a todos independente da condição social, econômica, física, sensorial, política, mental, étnica, entre outras marcas que fazem parte da humanidade.
Podemos pensar em situações ambientais distintas para surdos e ouvintes. Então, ao pensar em ouvintes comendo e conversando ao mesmo tempo ou falando debaixo d’água, ou ainda, conversando dentro de uma boate com som ensurdecedor? Nessas condições ambientais é possível ao ouvinte estabelecer troca de informação? Nesses casos, a pessoa surda comunica normalmente (BRASIL, 2002).
Assim, Pimenta (2001, p.24), autor surdo brasiliense, declara que “[…] a surdez deve ser reconhecida como apenas mais um aspecto das infinitas possibilidades da diversidade humana, pois ser surdo não é melhor ou pior do que ser ouvinte, é apenas diferente”. O jeito diferente de ser surdo permite estabelecer comunicação embaixo d’água, na boate, comendo e conversando, mas não com um objeto na frente dos interlocutores.
Portanto, os trabalhos de Kroeber e tantos outros antropólogos e sociólogos contribuíram para ampliar a atitude de compreensão e respeito à diversidade entre os grupos humanos e com a luta para quebrar paradigmas, entre eles o da deficiência. As características “[…] consideradas inatas, herdadas biologicamente, passaram a ser vistas como aprendidas […] tudo que se tomava por natural era na verdade fruto de um processo de interiorização de um padrão cultural” conforme destacam Assis e Nepomuceno (2008, p.3). Nesse contexto, há “[…] uma visão diferente de mundo, um jeito Ouvinte de ser e um jeito Surdo de ser, que nos permite falar em uma cultura da visão e outra da audição.” (BRASIL, 2002, p,39). A esse respeito há controvérsias e discussões entre autores acerca da cultura surda. Santana e Bergamo (2005) ressaltam a importância de mais estudos na área, para não corrermos o risco de uma divisão social entre surdos e ouvintes. Reconhecem que há opiniões a favor e opiniões desfavoráveis que questionam que “[…] a língua por si só não totaliza uma cultura e que surdos e ouvintes crescem numa mesma cultura, participam do mesmo universo social” (SANTANA e BERGAMO, 2005, p. 573). Acreditamos que o momento é propício para fortalecer grupos minoritários, a partir de uma perspectiva universal entre surdos, surdocegos e ouvintes com uma política linguística promotora da difusão da língua de sinais em todos os espaços sociais.
Dessa forma, como seres humanos somos capazes por meio das experiências corporalmente vivenciadas e mediadas de criar modos de produzir a vida, adaptar a ambientes adversos, transformar o meio, em outras palavras, somos capazes de garantir a vida e, ao mesmo tempo, produzir cultura. Assim, concordamos com Ullmann (1991, p.16) que a ampliação do conceito de cultura altera as possibilidades de compreensão do homem e da sociedade, na qual o homem é universal em cada contexto histórico “[…] regido pelas mesmas necessidades, guiado pelos mesmos impulsos, num afã gigantesco de atualizar todas as suas potencialidades”. Assim, membros de comunidades humanas encontram coerência dentro do próprio sistema cultural, sempre considerando que a cultura é dinâmica e que mudanças ocorrem dentro do próprio sistema ou do contato deste com outro sistema cultural. Nesse contexto, se torna crucial perceber a surdez e a surdocegueira como uma temática epistemológica e não audiológica, conforme apontam os estudos de Wrigley (1997).
Aqueles que defendem a cultura surda afirma que precisamos deixar claro que “[…] a cultura dos surdos sinaliza que as normas, valores, tecnologia e língua dos surdos são diferentes de outros grupos humanos” (ANDERSON, 1994, p. 2 apud BRASIL, 2002, p.39). Evidentemente que o contato entre culturas do mesmo território, espaço geográfico, irá compartilhar hábitos, vestuário, alimentação, costumes, crenças, mas que há singularidades que torna os surdos indivíduos multiculturais, sendo esse um ponto importante de ser salientado. Portanto, na medida em que o homem superou as adversidades da existência, ele libertou-se da natureza e passou a depender mais da capacidade ilimitada de obter conhecimento por meio da aprendizagem e atualizar suas potencialidades, processo denominado de endoculturação2.
Geertz (1973) destaca que o crescimento do cérebro humano, isto é, o crescimento do neocórtex, foi depois da cultura e não antes dessa. Ressaltamos novamente com base em Geertz, que não há humanos sem cultura. Portanto, o homem ao dominar a natureza com vistas a garantir a própria sobrevivência, se organizou em comunidades, desenvolveu comportamentos linguísticos, hábitos de trabalho em grupo e, em função da ação com outros homens, houve ampliação cortical e perdeu-se o hábito de repetir atos determinados geneticamente. Passou a criar novas possibilidades de existência.
Com a cultura o humano passou a depender muito mais do seu aprendizado, do meio cultural em que foi socializado. Assim, um homem e uma mulher, surdos, surdocegos e ouvintes, pessoas com deficiência ou neurotípicos manifestam ações distintas em função de uma educação e das relações culturais diferenciadas, normas, regras, valores, crenças, posturas decorrentes do sistema de símbolos estabelecidos com a comunidade e que dão direção a própria existência, conforme propõe Geertz (1973).
Nessa perspectiva, defendemos que há infindáveis modos possíveis de compreender, interpretar as relações presentes no mundo, a nossa é apenas uma, estejamos abertos para inúmeras possibilidades de perceber as situações e os processos de apropriação do conhecimento. Enquanto pessoas, profissionais, precisamos estar abertos ao outro e ao mundo como o outro vivencia. No caso dos surdos e dos surdocegos, a língua de sinais em campo visual ou háptica é o meio que utiliza para exprimir opiniões, desejos, dúvidas frente às distintas realidades e as diferentes formas de ser e de estar no mundo que produz valores, comportamentos compartilhados na sua comunidade. Santana e Bergamo (2005, p. 572) chama a atenção que “[..] a língua é um recurso na produção de cultura, embora não seja o único.”
2 Endoculturação: significa interiorização, assimilação, apropriação, aprendizagem. É um processo social que se inicia na infância mediado pela família, pelos amigos, posteriormente, a partir da escola, da religião, do clube, do trabalho, do partido político e de tantos outros grupos sociais. Endoculturação é o oposto da imposição de outra cultura (aculturação).
3. Processos multiculturais e identidade: a noção de pertencimento.
A identidade ou processos de identificação estão diretamente vinculados à cultura na qual estamos inseridos. Do ponto de vista multicultural há uma diferenciação do corpo que tenho do corpo que sou. O corpo que sou está intrinsecamente entrelaçado com as experiências simbólicas vivenciadas cotidianamente, é nossa abertura para o novo a qual cria uma teia de sentidos e significados. No caso dos surdos, as vivências são compartilhadas e as informações do ambiente são apreendidas mediante a modalidade visual-espacial da língua de sinais, fato distinto da modalidade oral-temporal da fala. No caso dos surdocegos, a via de acesso ao ambiente físico e humano é pela via háptica e tátil. Assim, Skliar (1998, p. 7) afirma que “[…] a existência da comunidade surda, da língua de sinais, das identidades surdas e das experiências visuais, que determinam o conjunto de diferenças dos surdos em relação a qualquer outro grupo de sujeitos”. Nesse contexto, a existência de uma Cultura Surda contribui com o processo de subjetivação e com a construção da identidade das pessoas surdas, o mesmo podendo ser estendido aos surdocegos.
Resta saber, como a literatura define identidade? Como ela se constrói?
Para Hall (2006, p.13) a identidade é uma construção definida historicamente, sendo que não há “[…] A identidade plenamente unificada, completa, segura, coerente é uma fantasia. […] O sujeito assume identidades distintas em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente”. Seguindo esse raciocínio Hall (2006, p.8) afirma que “[…] as identidades culturais surgem do nosso pertencimento a culturas: étnicas, raciais, linguísticas, religiosas e, acima de tudo, nacionais.” O autor chama a atenção para definições de identidades em três momentos históricos distintos: a) sujeito no iluminismo – tendia para o mundo pessoal, unificado, racional, centrado; b) sujeito sociológico – núcleo interior do sujeito não era autônomo e autossuficiente, interação entre o mundo interior e o exterior, identidades se configuram em um diálogo contínuo com as relações sociais; e, c) sujeito pós-moderno – identidades contraditórias, fragmentadas, não há uma identidade fixa, mas algo formado e transformado continuamente.
Na mesma linha, Goffaman (apud Hall, 2006, p.32) pondera que identidade está vinculada a como “[…] o eu, é apresentado em diferentes situações sociais, e como os conflitos entre estes distintos papéis sociais são negociados”. Em Marx (apud HALL, 2006, p. 33) veremos que a identidade está vinculada à história dos homens, sob condições que lhe são dadas. Assim, para Marx, “[…] os homens só podem agir apenas com base em condições históricas outras […], utilizando os recursos materiais e de cultura que lhes foram fornecidos por gerações anteriores”. Nesse contexto, será que podemos falar da identidade da pessoa surda na perspectiva da abordagem do oralismo puro, na qual os surdos eram impedidos de se expressar por meio de gestos ou sinais? Como os surdos poderiam se tornar uma comunidade sem língua e sem contato social entre surdos? Que biopoder historicamente foi sendo construído desde 1880 no controle das possibilidades e potencialidades da pessoa surda? Marx nos leva a pensar acerca desses pontos e a ponderar que o processo de identidade é fruto das condições e mediações históricas que estabelecemos com a sociedade.
Em Freud, identidade não é fixa e estável, mas é algo “[…] formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente no consciente no momento do nascimento” (FREUD, apud HALL, 2006, p. 38). No entanto, mesmo na visão psicanalítica, tudo o que foi internalizado inicialmente foi vivenciado no contexto externo. Portanto, no caso da surdez veremos que a constituição da identidade sofre influências do intercâmbio entre o eu e o outro, no qual a mediação linguística se torna crucial e sua ausência promove alteração no intercâmbio das experiências.
Jacques Derrida ao discutir o conceito de identidade pondera que “[…] o falante individual não pode nunca fixar o significado de uma forma final, incluindo o significado de sua identidade.” (apud HALL, 2006, p. 41). Processo que novamente leva-nos a inferir o papel da cultura, da linguagem, da língua na constituição da noção de quem eu sou. Nesse contexto, Santana e Bergamo (2005, p. 566) destacam que “[…] conferir à língua de sinais o estatuto de língua não tem repercussões linguísticas e cognitivas, tem repercussões também sociais. […] Ser normal implica ter língua […] língua de sinais como língua do surdo, o estatuto do que é normal também muda.” Assim, o estatuto da surdez e da surdocegueira passa da patologia para fenômeno social, eles são linguisticamente diferentes.
Perlin (1998, p. 52) a partir de Hall, discute a questão da identidade surda como algo em construção, em movimento e, “[…] que empurra o sujeito em diferentes posições.” Para ela, a identidade surda está vinculada ao uso da língua de sinais como língua natural, adquirida em contato com outro surdo. Aliado a esse contexto, a autora pondera a complexa constituição das identidades surdas inseridas em uma cultura ouvinte marcada por processos de repressão, controle extremo quando impede o uso da língua de sinais no estabelecimento de relações. Nesse processo, foi necessário a organização e a contestação e luta em defesa da língua de sinais enquanto língua de instrução e de comunicação. É no processo de constituição da cultura e da identidade surda que tem se legitimado pelo contato intenso e direto entre os surdos, pelo uso e fortalecimento da língua de sinais como língua de expressão e recepção dentro de uma cultura visual, como construção multicultural. Para Perlin (1998, p. 54)
“O encontro surdo-surdo é essencial para a construção da identidade surda, é como um abrir do baú que guarda os adornos que faltam ao personagem. […] gerar poder para si e para os outros. Os surdos são surdos em relação à experiência visual e longe da experiência auditiva. Essa diferença que separa a identidade surda e a identidade ouvinte […] as identidades surdas assumem formas multifacetadas em vista das fragmentações a que estão sujeitas […]”
Vale destacar que a identidade é uma construção permanente e está vinculada aos papéis sociais assumidos no cotidiano (ser surdo, pai, rico, pobre, heterossexual, homossexual, branco, preto, professor) e também pela ferramenta linguística presente nas mediações semióticas que permitem a constituição da subjetividade.
Defendemos aqui a importância da língua de sinais como base para a constituição da identidade surda e surdocega, pois a mesma permite posicionamento no mundo, exercendo sua cidadania. Porém esse processo pode ocorrer com surdos e surdocegos oralizados, implantados, pela modalidade escrita da língua e sinalizadores, não podemos restringir a dignidade e a cidadania da identidade surda ao uso exclusivo e restrito da língua de sinais. Segundo Santana e Bergamo (2005, p. 570) “[…] não há uma relação direta entre língua específica e identidade específica. […] A identidade […] é resultado de práticas discursivas e sociais em circunstâncias sócio-históricas particulares […] ele afeta e é afetado pelos discursos e pelas práticas produzidas”. Nesse contexto, precisamos falar de identidades surdas com facetas singulares e que foram classificadas por Perlim (1998, p. 62-67 com adaptações) como identidades: surdas, surdas híbridas (se tornaram surdos após aquisição da fala), surdas de transição (pessoas oralizadas e que entram em contato tardio com a comunidade surda), surdas incompleta (uso de AASI, implante coclear e que evitam o contato com a comunidade surda), surdas flutuantes (“desejam ser ouvintes, não tem compromisso com a comunidade surda”). Nota-se nas múltiplas identidades surdas classificadas por Perlim a presença do critério de pertencimento, envolvimento e compromisso das pessoas surdas com a comunidade e com o movimento surdo na luta pela cidadania e pelo direito de ser protagonista da própria história.
Neste artigo quando abordamos os aspectos culturais, linguísticos e identitários da surdez e da surdocegueira evidenciamos a diferença enquanto fenômeno social, deixando de lado a visão clínica e patológica na defesa da diferença linguística. Assim, a língua de sinais enquanto língua natural de quem é surdo, com ou sem outras comorbidades, não tem barreira de acesso, deve ser a língua de instrução do ensino intencional ministrado pela equipe de profissionais comprometidos com a educação bilíngue de qualidade. Assim, a oficialização da LIBRAS foi uma grande conquista da comunidade surda, o Decreto 5626 de 2005 que regulamenta a lei de LIBRAS prevê intérpretes e ampliam as possibilidades de acessibilidade linguística do surdo e do surdocego no contexto sociocultural. Precisamos nos unir e fortalecer a luta por uma educação e um ensino intencional que priorize o multiculturalismo, a acessibilidade linguística enquanto trilha na defesa da dignidade humana.
7. REFERÊNCIAS
ASSIS, Cássia Lobão. NEPOMUCENO, Cristiane Maria. Estudos contemporâneos de cultura. Campina Grande: UEPB/UFRN, 2008.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Ensino da língua portuguesa para surdos: caminhos para a prática pedagógica. Brasília: MEC/SEESP, 2002.
BRASIL. Decreto nº 5.626, de 22 de Dezembro/2005. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil _03/_ato2004-2006/2005/decreto/d5626.htm>. Acesso em: 19, jun., 2023.
GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.
HALL, Stuart. Identidades culturais na pós-modernidade. 11 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
LARAIA, R.B. Cultura – um conceito antropológico. 24.ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2007.
LOPES, Maura Corcini. Relações de poderes no espaço multicultural da escola de surdos. In: SKLIAR, Carlos (org.) A surdez: um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: editora mediação, 1998.
SANTANA, Ana Paula; BERGAMO. Alexandre. Cultura e identidade surdas: encruzilhada de lutas sociais e teóricas. Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 91, p. 565-582, Maio/Ago. 2005 Disponível em: <https://www.cedes.unicamp.br/>
ULLMANN, R. A. Antropologia – O homem e a cultura. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 1991.
WRIGLEY, Owen. The politcs of deafness. Gallaudet University Press, 1996.