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DA STULTIFERA NAVIS AO ASILO MODERNO: O BINÔMIO LOUCURA-EXCLUSÃO


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Locução – Lunna Mara
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Figura 1

Lúcia Regina Oliveira e Pinho: Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC, Juíza do Trabalho da 10a. Região. Licenciatura em História pela Universidade de Brasília – UnB e mestrado em História Cultural pela Universidade de Brasília-UnB.


Lattes: http://lattes.cnpq.br/3241211588291711



 

RESUMO

O presente artigo tem por escopo abordar o tema do trajeto histórico do binômio loucura-exclusão, sua relação de causa e efeito, na perspectiva do pensador Michel Foucault. O objetivo central do trabalho foi apresentar, em breve retrospectiva histórica, a mudança no status conceitual de loucura, respeitado o marco temporal (do século XV ao XIX) e o espacial (Ocidente europeu), pari et passu com as transformações trazidas por grandes acontecimentos culturais, sociais e políticos. Adotou-se a metodologia braudeliana assentada na análise dos processos históricos na longa temporalidade e espacialidade, bem como a revisão de literatura. O objetivo específico do trabalho foi analisar como a percepção da loucura estabeleceu processos excludentes. Conclui-se que a evolução sócio-histórica do conceito de loucura, não obstante as alterações que conheceu da Renascença ao século XIX, manteve estáveis e duradouros os mecanismos de exclusão e segregação do considerado louco.

 

Palavras-Chave: História. Loucura. Exclusão. Doença mental.

 

1.INTRODUÇÃO

O conceito de loucura é impregnado pela volatilidade do pensamento vigente em específico tempo histórico. É uma concepção que se rege no compasso das estruturas sociais, culturais e políticas, que se moldam, ajustam e entram em decadência ao longo do tempo.

Os transtornos mentais são condições de saúde que dificultam a integração e participação do indivíduo em atividades sociais, laborais e familiares. As representações do doente mental historicamente estiveram vinculadas a estereótipos depreciativos e sentimentos de aversão e estranhamento ao doente.

O espaço da exclusão apresenta-se como um locus que abriga aqueles que não se enquadram nos padrões canônicos da normalidade eleita ou que não correspondem aos valores do outro. Segundo Xiberras (1993 apud WANDERLEY, 2001), “[…] excluídos são todos aqueles que são rejeitados de nossos mercados materiais ou simbólicos, de nossos valores […]“. A rejeição se fulcra em incompreensões e compreensões sobre doenças, comportamentos, atitudes e diferenças moldadas no tempo histórico e insufladas por questões culturais, sociais e políticas.

 

2. METODOLOGIA

O historiador Braudel (1902 – 1985), da segunda geração dos Annales, apontava para o sentido de que determinados temas, sobretudo aqueles ligados às mentalidades, deveriam ser vistos como objetos de estudos da longa temporalidade, porque as modificações mentais eram mais lentas do que as modificações nas estruturas sociais e políticas. Esta análise privilegia o plano das regularidades, permanências e repetições da história (FLORES, 2008). Para Lucien Febvre (1878-1956), um dos fundadores da Escola dos Annales1,  a perspectiva mental no conhecimento histórico aponta a relevância do estudo das transformações lentas e constantes. A importância da ação de um personagem histórico passa a ser relativizada ao longo do tempo e a ‘obra histórica’ passa a ser avaliada como fruto do social. Febvre (1965, p. 221 apud RAMINELLI, 1990, p. 101) resume: “Numa palavra, tudo isso permite dizer que o indivíduo é sempre o que sua época e o seu meio social permitem.” Dessa forma, pensamentos, ideias, ideologias, segmentos morais, atmosferas de compreensão científica, entre outros, estariam dentro da esfera das mentalidades, isto é, formas duradouras de pensamento que caracterizam longos espaços de tempo. François Dosse (1994, p. 116) destaca que para Braudel é “[…] a longa duração que condiciona até as estruturas mais imutáveis.”


1.Movimento historiográfico nascido na França no início do século XX. Questionava o paradigma positivista da historiografia caracterizado pelo estudo de personagens, elites e instituições em detrimento do aprofundamento na análise das estruturas e conjunturas históricas. Junior, Antônio Gasparetto. Fernand Braudel. 2006


A exclusão dos doentes mentais e pessoas com deficiências físicas é uma realidade de longa duração, o que aponta para a pertinência da abordagem metodológica eleita. Segundo Mariângela Wanderley (2002):

“Ao se tratar concretamente do tema da exclusão é necessário precisar o espaço de referência que provoca a rejeição (categoria fundamental). Qualquer estudo sobre a exclusão deve ser contextualizado no espaço e tempo ao qual o fenômeno se refere.”

Nosso marco histórico inicia na Idade Média ocidental, pelo estudo da loucura realizado por Michel Foucault, em sua tese de doutorado intitulada Loucura e desrazão: história da loucura (1961) da qual derivou sua obra “A história da loucura no período clássico”.

 

3.DISCUSSÃO E RESULTADOS

“A experiência completamente trágica da loucura não guarda nenhum equivalente na cultura ocidental; pois a nossa cultura sempre cuidou de mantê-la à distância”. Michel Foucault”2

 

Foucault chama atenção para o processo específico da loucura por meio da análise do contexto social, ideológico e cultural de representações pictóricas e obras literárias. Nesse contexto, Michel Foucault (1926 – 1984) lançou-se na construção da história dos loucos, tendo como recorte histórico o período compreendido entre a Baixa Idade Média3 e o século XIX. Seu estudo verifica como a loucura se tornou um objeto do conhecimento científico, por meio de um progressivo domínio da razão sobre a loucura.

 Dentro da retrospectiva histórica trazida pelo filósofo, percebe-se a prevalência, na longa temporalidade, da estigmatização do doente mental, que resultou na negação a uma plena existência inserida na sociedade auto considerada normal. A preocupação de Foucault (2019) não é classificar quem são os loucos e os racionais, em determinados contextos históricos, mas mapear o percurso da alteração da percepção da sociedade sobre a loucura ao longo dos tempos.

Ao analisar o processo da transmutação das visões sobre a loucura dentro da temporalidade demarcada, é possível verificarmos a existência ou inexistência dos espaços sociais, culturais e políticos estendidos ou suprimidos aos sujeitos considerados loucos.

É válido enfatizar o amplo espectro de distúrbios, transtornos e de deficiência física ou de deficiência intelectual que se performou na concepção de loucura ao longo dos séculos.


2 Declaração colhida do filósofo na célebre entrevista que integra o documentário “Foucault par lui-même”

3 Alta Idade Média refere-se ao período compreendido entre os séculos V – XI.


Se por um lado, a percepção sobre a diferença se modifica ao longo dos tempos, por outro os desenvolvimentos históricos da medicina igualmente impõem considerável dificuldade para se estabelecer conceitos fechados e coerentes com a categorização médica ou popular. Segundo Le Goff (1995), as doenças têm historicidade e para entendê-las tem-se que mergulhar na história profunda dos saberes e das práticas ligadas às estruturas sociais, às instituições e às representações. Não obstante, o termo ‘loucura’ em si goza de grande longevidade:

Na França, os termos ‘fou’ e ‘folie’ (louco, loucura) remontam à Chanson de Roland, ao redor 1080, enquanto o conceito mais moderno de “alienação mental” se desenvolveu no século XIV, levando à identificação de médicos especialistas como “alienistas” no início do século XIX. (BOGOUSSLAVSKY; MOULIN, 2009, p. 257)

A alegoria de Bosch (século XV) representa a loucura antes dos tempos modernos. Na tradição medieval, a mobilidade marca a existência do louco. A loucura não se enclausura, mas transita dentro de um espaço de liberdade. Ele é um peregrino que vai de cidade em cidade, levado por embarcações de mercadores e viajantes que o soltam em lugares distantes. O local de embarque e desembarque são seus pontos fixos e transitórios. Sua liberdade se dá no espaço da amplidão do mar. Em terra, sua liberdade se restringe a subir e sair da nau.  O louco era o sujeito errante, extravagante e diferente aos olhos de todos, que trafegava e circulava entre as cidades. A experiência do Renascimento não estabelece diferenciação entre a razão e a “não razão”. O louco era reconhecido por possuir uma sabedoria peculiar, que manifesta a realidade que sua loucura percebe. A loucura será elogiada na sátira social de Erasmo4 e traduzida nas sábias palavras do mito quixotesco de Cervantes5. Enquanto não distinguida da razão, ela não era objeto do conhecimento, não carecia de ser estudada. Não considerado um problema para a sociedade, o louco não é recolhido em um posto fixo, mas sua liberdade se perfaz na incerteza do não-pertencimento. Ele está em todos os lugares, mas não pertence a qualquer um.

[…] confiar o louco aos marinheiros é com certeza evitar que ele ficasse vagando indefinidamente entre os muros da cidade, é ter certeza de que ele irá para longe, é torná-lo prisioneiro de sua própria partida. Além do mais, a navegação entrega o homem à incerteza da sorte: nela, cada um é confiado a seu próprio destino, todo embarque é potencialmente, o último. (FOUCAULT, 2019, p. 11)


4 Elogio da loucura, obra do humanista renascentista Erasmo de Rotterdam (1466 – 1536)

5 Dom Quixote de la Mancha, obra do escritor classicista espanhol Miguel de Cervantes (1547 – 1616).


Os Séculos das Luzes (XVII – XVIII) reportam uma nova concepção sobre o pensamento humano. O racionalismo cartesiano coloca a razão como princípio para alcançar o conhecimento verdadeiro, operando-se assim uma cisão entre a loucura e a razão. A racionalidade, a humanidade e a existência estão coesas e traduzidas no cogito de Descartes: “penso, logo existo”6.  Se não penso, sequer existo; se não existo, não há lugar para mim já que não tenho existência. No mundo das ideias, de objeto de fascínio, o louco torna-se o não-personagem, o excluído do cálculo da razão.

A Não razão do século XVI constituía uma espécie de ameaça aberta cujos perigos podiam sempre, pelo menos de direito, comprometer as relações da subjetividade e da verdade. O percurso da dúvida cartesiana parece testemunhar que no século XVII esse perigo está conjurado e que a loucura foi colocada fora do domínio no qual o sujeito detém seus direitos à verdade: domínio este que, para o pensamento clássico, é a própria razão. Doravante, a loucura está exilada.

Traça-se uma linda divisória que logo tornará impossível a experiência tão familiar à Renascença, de uma Razão irrazoável, de um razoável Desatino. (FOUCAULT, 2019, p. 47 – 48)

O rompimento da razão com a ‘não razão’ ensejou o enquadramento da loucura como uma doença que necessita ser tratada. Até então, a loucura não é considerada uma enfermidade, mas uma característica singular, uma forma de saber própria e diferenciada do outro. A voz do médico especialista será a última instância sobre as verdades da loucura e nenhuma outra área do conhecimento terá autoridade para se pronunciar. Sequer o louco poderá falar sobre si próprio.

O diálogo interrompido entre a loucura e a razão, na era clássica, será na contemporaneidade problematizado. Roudinesco (2019, p. 215), em seu estudo sobre a psicanálise, concluiu que o discurso médico “[…] não conta a história da loucura da mesma forma que o paciente, pintor, lógico ou poeta atualiza.” Enfatiza que ainda há uma questão tormentosa que permeia a consciência dos loucos e terapeutas: “[…] a loucura está fora da razão ou é inerente à própria racionalidade?”

Foucault (2019) positiva que a associação da loucura ao onírico e ao errático, ensejou o início do enclausuramento dos indivíduos considerados privados de raciocínio. Em 1656, funda-se, em Paris, o Hospital Geral, como um espaço de segregação, para onde serão destinadas as pessoas indesejadas da sociedade. O século XVII criará inúmeras outras casas de internamento, que nada a assemelham a nenhuma ideia médica. Medidas de prisão arbitrárias manterão sob regime de internamento uma eclética massa. Interna-se o insano, como interna-se o desajustado social, o pobre, os inocentes malformados e disformes, os espíritos fracos, o libertino, o filho ingrato, a prostituta e o debochado. Todos que desagradam ou que não se enquadram na padronagem estabelecida pela ordem religiosa, burguesa e política instituídas são alvos de uma assepsia social justificada.


6 Elogio da loucura, obra do humanista renascentista Erasmo de Rotterdam (1466 – 1536)


 

A loucura não mais será expulsa das cidades, mas estará segregada dentro da própria sociedade, resguardada em instituições de controle, como medida econômica, de precaução social e com forte conotação moral. Os hospícios, alguns sob o controle da Igreja, funcionarão como espaços de cuidados, de assistência e, principalmente, de repressão e segregação.

Na perspectiva do historiador marxista Anderson (1974), a emergência do capitalismo e do Estado absolutista deu-se ao final da Idade Média, a partir da crise do modelo de produção feudal. A retomada da navegação mediterrânica, o ressurgimento das atividades comerciais, o aumento populacional e a urbanização são alguns dos fatores que ensejaram a emergência da classe burguesa, detentora de expressivo poder econômico. A ascensão social da nova classe e sua associação com o poder político a legitimam a organizar a sociedade e regulá-la consoante seus valores: família, prosperidade, religião e ostentação. O ethos burguês não admite comportamentos descomprometidos e indisciplinados com os seus ideais, como explica Hobsbawn (2012, p. 349 – 378) ao analisar a era do capital.  Assim observado, Foucault (2019) conclui que, na raiz do movimento da grande internação do século XVII, está a cumplicidade entre o poder real, a burguesia e a Igreja, que não tardarão em ver novas funções para as casas de internação. “Não se trata mais de prender os sem trabalho, mas de dar trabalho aos que foram presos” (FOUCAULT, 2019, p. 67).

O final do século XVIII testemunha o grande desenvolvimento na tecnologia da produção e a transformação das cidades. A sociedade clássica organiza-se e regula-se pelos valores do capitalismo, agora plenamente consolidado. Neste contexto, a ociosidade é interpretada como pecado capital por prejudicar a dinâmica de produção. A obrigação geral de trabalho dos internos, indistintamente convocados, confrontou a experiência da loucura com a incapacidade laboral. Por outro lado, a classificação da loucura, como um desvio da ‘normalidade’ reforça na sociedade a noção da incapacidade do doente mental. A mente saudável é produtiva, a mente doente do louco o torna um inútil para a comunidade.

Este é o grande ponto de inflexão na história do desatino trazido pela reflexão foucaultiana, pois pela primeira vez, e a partir da era clássica, a loucura será percebida através de uma condenação ética da ociosidade e da passividade.

 

[…] a loucura é percebida no horizonte social da pobreza, da incapacidade para o trabalho, da impossibilidade de integrar-se no grupo; o momento em que começa a inserir-se no texto dos problemas da cidade. (FOUCAULT, 2019, p. 78)

 

“…Por outro lado, a classificação da loucura, como um desvio da ‘normalidade’ reforça na sociedade a noção da incapacidade do doente mental. A mente saudável é produtiva, a mente doente do louco o torna um inútil para a comunidade.”

Emerge uma nova sensibilidade social que opta pelo banimento; a loucura é denunciada, associada à negatividade vazia da desrazão. A loucura deixou de ser, na era clássica, o signo de outro mundo, assumindo a manifestação do não ser. O louco é percebido como o diferente, portador de uma razão ofuscada, porque nada vê. Na Renascença, a loucura é considerada uma característica exótica ou sobrenatural que não obsta o livre trânsito do insensato. Os séculos XVII e XVIII reservam o banimento do despossuído da razão, por sua incapacidade de se adaptar aos valores da sociedade.

Sob a Revolução Francesa consuma-se a transformação da loucura como doença mental, tornando-se assim objeto do conhecimento da medicina e se estabelecendo a necessidade de internação dos loucos em lugares específicos. Firma-se uma nova forma de ver a loucura; agora sob a perspectiva científica. A loucura, porquanto desvio da ‘razão normal’, como toda doença, pode ser suprimida pela cura. Segundo Foucault (2019), as figuras da loucura são classificadas em grandes grupos: das demências, das manias e melancolias e das histerias e hipocondrias. O século XVIII esforça-se no emprego de variadas técnicas terapêuticas que nem sempre estão sob o domínio do médico. Assim, considerando que a loucura tem um componente de fraqueza, sugere-se a ingestão de ferro; a transfusão sanguínea para purificação do sangue sobrecarregado do melancólico; a imersão em água fria e a regulação dos movimentos, a fim de imobilizar o louco agitado ou impelir o catatônico a caminhadas. O século XIX indigna-se com o tratamento inumano, alhures imposto ao louco, com prisões, privações e castigos, porquanto a loucura passa a ser percebida no “[…] acidente humano da doença[…]” (FOUCAULT, 2019, p. 146), mas a experiência da loucura ainda estará distante de uma concepção humanística.

A pessoa com  doença mental será tratado em instituições asilares ou locais de retiro, sendo o internamento, em si, o procedimento terapêutico por excelência. Pressupunha o ideal utópico da cura, da erradicação e da participação consciente do alienado. O hospício moderno deu origem ao alienismo, que acolheu o sofrimento psíquico e, na ausência de uma terapia possível, lançou mão do tratamento moral que envolvia cuidados físicos e técnicas de coerção e persuasão, estabelecendo-se regras, agendas e procedimentos (ROUDINESCO, 2019, p. 216).

Com efeito, à época de Pinel (1745-1826), e segundo ele próprio, firma-se a convicção de que o hospício “[…] é o meio mais seguro e mais eficaz de devolver a razão a alguém.” (PINEL, 1978, p. 239 apud FOUCAULT, 2019, p. 351). É a primeira vez que se entabula uma conversa diretamente com a loucura. O asilo seria então o que Foucault (2019, p. 371) nomeou de “internamento ‘esterilizado’”. A loucura ali poderia se manifestar em todas suas formas, sem perigo para si mesma, e sem ameaçar os extramuros:

[…] ela (a loucura) não irá mais de um aquém para um além, em sua estranha passagem; nunca mais ela será esse limite fugidio e absoluto. Ei-la amarrada, solidamente, no meio das coisas e das pessoas. Retida e segura. Não existe mais a barca, porém o hospital. (FOUCAULT, 2019, p. 43)

É imperioso observar que a experiência histórica da loucura teve como elemento permanente a estigmatização e o isolamento e que, da nau renascentista ao século XX, outras formas de lidar com o louco foram manejadas. Não houve tempo para que essa consciência trágica da loucura entrasse em torpor.

Ainda no século XX, tratamentos e terapias psiquiátricas poderiam consistir em lobotomia, eletrochoques e comas induzidos por insulina. Em outra página infame da história, o programa de extermínio autorizado por Adolf Hitler:

Paixão, tumulto, frenesi, raiva, desvario, a loucura é sempre uma espécie de avesso da razão. Mas talvez seja também um excesso, uma desmedida, uma postura desviante: loucura das grandezas, loucura mansa, loucura do amor louco etc. Em todas as culturas, os loucos foram ora sacralizados como criaturas fora das normas que se devia respeitar ou idolatrar, ora perseguidos como pertencentes a uma “raça” inferior, como os judeus, homossexuais e perversos. E não foi um acaso os nazistas terem decidido, a partir de 1933, exterminar homens e mulheres e crianças acometidas por problemas mentais ou neurológicos e má-formação genética. Todos foram submetidos a um programa especial de eutanásia que pretendia “libertá-los de uma vida indigna de ser vivida”. A morte era administrada fosse por injeções de substâncias mortais, fosse por “desnutrição”, fosse, a partir de 1940, pelo uso de um gás, utilizado em seguida para o genocídio dos judeus e dos ciganos. (ROUDINESCO, 2019, p. 213)

No Brasil, D. Pedro II inaugurou o primeiro manicômio em 1852, na cidade do Rio de Janeiro. Em 1890, a instituição foi renomeada para Hospício Nacional dos Alienados, também popularmente conhecido por “Palácio dos Loucos”. A futura rede manicomial esteve sob os cuidados das Santas Casas de Misericórdia e sob a direção da Igreja Católica. A criação de hospitais psiquiátricos relacionou-se, tanto com o tratamento dos loucos, quanto com a necessidade de abrigar o grande número de pessoas que circulavam pela cidade sem ocupação (ANDRADE, 2018). Os pacientes internados tinham procedências diversas, mas convergiam para uma só necessidade estatal – a exclusão social.  

“No Brasil, D. Pedro II inaugurou o primeiro manicômio em 1852, na cidade do Rio de Janeiro. Em 1890, a instituição foi renomeada para Hospício Nacional dos Alienados, também popularmente conhecido por “Palácio dos Loucos”.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Falar da trajetória histórica da loucura é falar da experiência histórica da exclusão. A estigmatização do doente mental ou da pessoa considerada louca foi preponderante ao longo dos séculos e justificou processos excludentes que lhe subtraiu o convívio familiar, a experiência do trabalho e o acesso à educação; em suma, a vida em sociedade.

Não obstante a longa temporalidade, as variadas espacialidades e os diferentes status epistemológicos que a loucura conheceu, o fator exclusão se mantém no âmbito das permanências ao longo dos tempos. No Ocidente, o binômio loucura-exclusão conheceu pouca instabilidade e manteve-se coeso na perspectiva de causa e efeito. Da experiência renascentista da indiferenciação entre o saber e a loucura, da grande internação que incluiu os loucos no rol dos indesejados, ao asilo moderno de Pinel, o destino da loucura foi o isolamento.

Michel Foucault revela que o conceito de louco, apropriado na história, nem sempre convergiu para a concepção psiquiátrica contemporânea. Com efeito, antes de Pinel e Esquirol, é uma anacronia falar-se em “doença mental”, o que havia era apenas “doença”. A loucura histórica abrangeu um continente heterogêneo de pessoas que fugiam ao padrão de normalidade aceito. Nesta equação, a deficiência física, mental, intelectual ou sensorial; os transtornos globais de desenvolvimento, como autismo, síndromes do espectro do autismo e psicoses e a superdotação7 estiveram homogeneizados na categorização de loucura e, em consequência, experimentaram a discriminação ou a segregação, em algum nível.

A reflexão histórica e filosófica sobre a exclusão é o exercício que toda a sociedade deve reiteradamente se permitir, para que não se esqueça o que foi, o que é e o que quer ser.


COMO CITAR:

PINHO, Lúcia Regina Oliveira e. Da Stultifera Navis ao Asilo Moderno: O Binômio Loucura-Exclusão. In: Sala de Recursos Revista, vol.2, n.2,  p. 24 – 34 , mai. – agos. 2021. Disponível em:<http://www.saladerecursos.com.br>.


 

5.REFERÊNCIAS

 

ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado Absolutista. São Paulo: Brasiliense, 1995. 650 p.

ANDRADE, Rodrigo de O. Aos loucos, o hospício. Revista Pesquisa Fapesp. n. 263, jan. p 90 -93, 2018. Disponível em:    <https://revistapesquisa.fapesp.br/aos-loucos-o-hospicio/>. Acesso em: 09 jul. 2021.

BOGOUSSLAVSKY, Julien; MOULIN, Thierry. From Alienism to the Birth of Modern Psychiatry: A Neurological Story? European Neurology. n. 62, p. 257 – 263, Ago./2009. Disponível em: <From alienism to the birth of modern psychiatry: a neurological story? – Abstract – Europe PMC>. Acesso em: 30 jun. 2021.

DOSSE, François. A história em migalhas: dos Annales à nova história. Campinas: Ensaio, Tradução: Dulce A. Silva Ramos, 1994. 104 p.  Disponível em: <https://pt.slideshare.net/Lima987/a-histria-em-migalhas>. Acesso em: 26 maio 2021.

FEBVRE, Lucien.  Combats pour  L´Histoire.  2ª  ed.  Paris:  A.  Cotin,  1965,  p.221.

FLORES, Elio Chaves. Lições do professor Braudel: o Mediterrâneo, a África e o Atlântico. Afro-Ásia. n. 38, p. 9-38, 2008. Disponível em: <https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=77015013001> . Acesso em: 02 jun. 2021.

FOUCAULT PAR LUI-MÊME. Direção: Philippe Calderon. BFC Productions. França: Arte, 2003. Disponível em: < https://www.dailymotion.com/video/x2cn2u2>. Acesso em: 29 abr.2021.

FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 2019. 688 p.

HOBSBAWN, Eric J. A era do capital. São Paulo: Paz e Terra, 2012. 399 p.

LE GOFF, Jacques. As Doenças têm história. Lisboa: Terramar, 1985. 368 p.

ROUDINESCO, Elizabeth. Dicionário amoroso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2019. 360 p.

WANDERLEY, Mariângela Belfiore. Refletindo sobre a noção de exclusão. In: B. Sawaia (Org.). As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 16-26.

6. ANEXOS


 

Figura 2: Stultifera Navis8
FONTE: Museu do Louvre, Paris [(2021)].

8 A Nau dos Insensatos ou A Nave dos Loucos é uma obra do pintor renascentista Hieronymus Bosch (1450 -1516). Datação provável: 1490 – 1500. Retrata um barco à deriva, em alto mar, repleto de pessoas que se divertem enquanto se banqueteiam com comida e vinhos. Dentre os ocupantes, há uma freira que toca um instrumento de corda enquanto disputa, com um frade franciscano, um pão suspenso por uma corda. Há pessoas que riem, outras que cantam e outras que se espantam. Há um enfermo ao fundo do barco sendo acalmado por uma mulher, há passageiros ao mar que se agarram ao barco e um bobo da corte alheio à cena e disposto acima de todos. O mastro é uma árvore e não há velas. O remo é uma grande colher de madeira.

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