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EXPERIÊNCIA NO ENSINO DE SURDOCEGOS NAS ESCOLAS PÚBLICAS DO DISTRITO FEDERAL


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Voz – Lunna Mara

Fatima Ali Abdalah Abdel Cader – Doutora em Educação Especial (UFSCar). Mestre em Educação (UnB). Psicopedagoga (UFG). Pedagoga (UFG). Especialista em Português como Segunda Língua para Surdos (UnB). Graduanda em Psicologia. Possui experiência na educação básica, tendo sido professora na Secretaria de Estado de Educação de Goiás com surdos e no Distrito Federal no atendimento e na coordenação do trabalho com estudantes, professores e famílias de surdocegos 1998-2018. Professora Titular do Centro Universitário do Distrito Federal – UDF no período de 1996 a 2020.Membro do Comitê de Ética em Pesquisa e atuou de 2016 a 2019 como coordenadora pedagógica na acessibilidade no ensino superior na UDF.  Possui publicações na área do ensino e da aprendizagem na educação básica na perspectiva da inclusão, mediante uma proposta existencial e coletiva do humano


A perspectiva da educação inclusiva veiculada no Brasil a partir da Constituição Federal (BRASIL, 1988), entre outros documentos oficiais, é uma decisão política em defesa das potencialidades do desenvolvimento humano. A inclusão é vista a partir da mediação linguística veiculada no contexto sociocultural, sendo a escola um dos espaços privilegiados deste movimento. Salienta-se que a inclusão vai além do acesso ao ambiente físico e ao conteúdo científico, envolve a percepção da própria pessoa de como ela é tratada, se é bem vinda e valorizada como membro da comunidade escolar. O foco da inclusão precisa nutrir no outro o sentimento de pertença, independente se o outro tem ou não deficiência, no nosso caso, a participação da pessoa surdocega nos processos formais e informais na escola, como parte do desenho universal de acessibilidade.

Diante do compromisso com a inclusão do Governo do Distrito Federal-GDF, o objetivo deste artigo é compartilhar a experiência de 20 anos como funcionária da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal-SEEDF. Período de marcado por uma atuação ética e comprometida, aliada a política nacional e local, com as atividades pedagógicas voltadas para o acesso, a permanência e a viabilidade de promover o sentimento de bem-estar, de pertença, da pessoa surdocega, do guia-intérprete e da família na escola. Além disso, ampliamos o foco para atividades em parceria com as famílias dos surdocegos, na escola e em encontros de confraternização, trocas de experiências e relatos das famílias e dos próprios surdocegos nos cursos de formação desenvolvidos em parceria com a EAPE -Escola de Aperfeiçoamento dos Professores da Educação.

A configuração da inclusão de surdocegos em 2006 foi um diferencial na organização do contexto da sala de aula que passou a ser composta, em alguns casos, pelo intérprete para surdos, guia-intérprete para surdocego e o professor regente. A relação entre profissionais distintos gera conflitos, demanda negociações e organização das competências as quais foram sendo construídas, avançamos, mas o caminho se encontra em vias de pavimentação.

No serviço de adequação na educação infantil, ensino fundamental anos iniciais e Programa de Educação de Jovens e Adultos-EJA, o guia-intérprete conseguia, com apoio da itinerância, suprir as demandas do ensino, da adequação das atividades com aprovação do professor-regente, da preparação de material, do ensino do português como segunda língua, do uso do sorobã, da transcrição das atividades para o código Braille, do desenvolvimento da noção de locomoção e orientação no ambiente interno da escola, da transcrição das respostas do Braille para tinta, e, principalmente, da ampliação dos contatos sociais e do repertório linguístico com ênfase no desenvolvimento da habilidade de perguntar. 

No entanto, as séries finais do ensino fundamental e no ensino médio, a configuração do guia-intérprete com vistas a atender todas as demandas precisou de um novo desenho. Neste caso, a parceria com todos os professores da sala de recursos específica em deficiência auditiva ou visual, se fez necessária, com o cuidado de ter um professor referência na sala de recursos. A itinerância atuava orientando e buscando junto com a equipe alternativas para tornar o conteúdo científico acessível, visto que no período de 2006 a 2018, evitávamos a eliminação de conteúdo. Era necessário discutir e encontrar uma rota para ensinar e o outro acessar as informações, por meio da mediação linguística associada ao material em Braille, alto relevo, exemplos, dramatizações, representações das situações ou outras rotas de ensino que se fizessem necessárias.

Salienta-se que a inclusão vai além do acesso ao ambiente físico e ao conteúdo científico, envolve a percepção da própria pessoa de como ela é tratada, se é bem vinda e valorizada como membro da comunidade escolar.”


É importante salientar que a literatura na área da surdocegueira evoluiu muito. Em 1998, quando assumi o concurso na SEEDF, a perspectiva era surdez, deficiência visual e deficiência mental (hoje intelectual). Questionei essa visão por meio do  aprofundamento teórico e prático, pois os alunos eram surdocegos e eu, enquanto professora, não sabia o quê, como, porquê e quando fazer para entrar no mundo deles. Assim, em uma práxis constante, o respeito e a relação com as pessoas e não com a deficiência foi enfatizada no cotidiano da sala de aula. Passei a observar o que eles faziam e iniciei o processo de aprendizagem com base na teoria sócio-cognitiva e na teoria co-ativa. Repetia junto com eles os movimentos; além de propor atividades que toda criança manifesta resposta de relaxamento e prazer, como: cócegas, sopro na barriga, embalar, massagens, atividades com luz, som/vibração, contato corporal e uma interação da tríade mãe-criança-professora. Certos de que o ensino especializado na precoce e séries iniciais de crianças surdocegas pré-linguísticas envolve atividades corporais, mão-sobre-mão orientando a criança na exploração do outro, dos objetos e do ambiente. Cabe ao outro perceber se a criança deseja continuar ou concluir a atividade de balançar para frente e para trás, ou se ela altera para o movimento da esquerda para a direita. O princípio da observação é algo constante quando se trabalha com pessoas com ou sem deficiência. Elas precisam ser validadas no que e como fazem, essa é uma das possibilidades de nutrir a autoconfiança nas interações, certos de que toda criança pode ser alcançada, conforme defende Vygotski (1997).

A experiência com a precoce de surdocegos despertou o desejo de realizar o doutorado em educação especial com a proposta de alfabetização de duas crianças surdocegas pré-linguísticas, o trabalho com as famílias e o processo de formação do professor em serviço (CADER-NASCIMENTO, 2004). A tese de doutorado e o livro “Descobrindo a surdocegueira: educação e comunicação” foram as primeiras publicações científicas da área no Brasil (CADER-NASCIMENTO e COSTA, 2005). No retorno à SEEDF, ministrei o primeiro curso de formação de professores em surdocegueira em 2004, depois outros cursos aconteceram com o objetivo de formar profissionais para atuar na área. 

Em 2005, começaram as discussões com a Diretoria de Ensino Especial para garantir o acesso e a permanência do surdocego nas salas regulares do ensino fundamental. Assim, pela primeira vez na estratégia de matrícula, vigente em 2006, estava previsto a figura do professor na função de guia-intérprete e redução do número de alunos na turma regular. Dois surdocegos totais, ambos matriculados em escolas na região do Plano Piloto, foram contemplados. A estratégia de 2007 passou a contemplar surdocegos parciais e ampliou o serviço para Ceilândia, Planaltina e Plano Piloto. Em função da característica linguística e a manifestação do comprometimento sensorial, o encaminhamento pode ser para uma escola com sala de recursos específica em deficiência auditiva ou para uma escola com sala de recursos específica em deficiência visual. Nem todos os surdocegos podem ser encaminhados para escolas só com a garantia da figura do guia-intérprete. É crucial que os estudantes encontrem pessoas usuárias nativas de sistemas de comunicação semelhante ao que está aprendendo ou que utiliza. Certos de que a aprendizagem ocorre na interação e o sentimento de pertencimento é crucial para o desenvolvimento de habilidades sociais com impacto na aprendizagem.

Durante a implantação do serviço, consideramos para elegibilidade do atendimento os critérios clínicos da presença da deficiência estabelecidos no Decreto Federal 5.296/2004. Na conjuntura atual há o Projeto de Lei 9382/2017 que visa fomentar a formação profissional Tradutor, Intérprete e Guia-intérprete de Libras, bem como a modernização da regulamentação da profissão, contribuindo para uma maior reconhecimento e valorização profissional, além de uma maior inserção educacional, social e profissional das comunidades surda e surdocega em todo o país. Neste contexto, salienta que o fator crucial a ser considerado no ensino é a condição linguística, ou as possibilidades de aprendizagem linguística sem barreira de acesso. Este fator orientava a escolha da escola, do guia-intérprete, da sala de recurso específica em surdez ou em deficiência visual em função dos equipamentos, materiais e experiências dos professores que atuam nesses espaços. A Equipe Especializada de Apoio e Aprendizagem do Centro de Ensino Especial de Deficiente Visual – CEEDV junto com a itinerante da área realizavam os encaminhamentos. 

Fruto do trabalho coletivo de guias-intérpretes, professores da sala de recursos, professores-regentes, itinerância, gestores, estudantes, comunidade escolar como um todo e a parceria com a família que conseguimos incentivar e apoiar surdocegos no ensino superior. Dois concluíram o ensino superior no primeiro semestre de 2020. Deste modo e com foco na noção de inclusão com um olhar para o pertencimento e para a acessibilidade foi uma alternativa que se mostrou viável. Talvez em um futuro próximo possamos educar para a vida, promovendo pela educação o desenvolvimento das funções mentais superiores por meio do acesso linguístico e social às ferramentas que nos permitem realizar parte da lista de nossos desejos.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Constituição Federal. Brasília, 1988. Disponível em: <www.planalto.gov.br>. Acesso: 30, set. 2020.

CADER-NASCIMENTO, Fatima Ali Abdalah Abdel. Estudo de caso com crianças surdocegas, suas famílias e com a professora. Tese (Doutorado), São Carlos:  UFSCar, 2004. 250 p. 

CADER-NASCIMENTO, Fatima Ali Abdalah Abdel; COSTA, Maria Piedade Resende da. Descobrindo a surdocegueira: educação e comunicação. São Carlos: EdUFSCar, 2005.

VYGOTSKI, Lev Semyonovich. Obras escogidas. Tomo V – Fundamentos de Defectologia. Madrid: VISOR, 1997.


Atividades desenvolvidas por guias-intérpretes durante o ensino especializado  de surdocegos nas escolas públicas da SEEDF, no período de 2005-2018.

As figuras evidenciam o ato de contar história para um aluno surdocego (baixa visão e surdez moderada) na sala inclusiva, em 2009; e, a interação entre três surdocegos, sendo dois com resíduo visual e uma surdocega total, em 2009. Essa atividade entre surdocegos fortalece o sentimento de pertencimento, crucial no desenvolvimento humano.

Uso da tela de náilon para escrita e desenho em alto relevo. Recurso muito utilizado com surdocegos totais e parciais e com  deficientes visuais. A figura ilustra a tela (material artesanal produzido por guias-intérpretes), em cima da tela há uma folha em branco e mãos realizando a ação do registro, no caso da imagem, o desenho do mapa da África. A imagem ao lado expressa o que a estudante mais gostou de uma atividade extraclasse, realizada no Sítio Gerânio. Fonte: Arquivo pessoal (CADER-NASCIMENTO, 2014)

Currículo funcional e família. Preferência de comida e preparação do leite com nescau pela aluna surdocega total, língua de sinais háptica e braille. Orientação da família em relação a padronização dos potes de manteiga (redondo) e margarina (quadrado), chocolate (maior que o pote de leite). Local de armazenamento para viabilizar a autonomia da aluna. A atividade sendo realizada no contexto da família é importante, porque utilizamos os recursos, o espaço e as pessoas do universo de pertencimento da estudante. Possibilitamos evidenciar as competências do surdocego e valorizar as próprias competências e habilidades dos componentes do grupo familiar na interação com a aluna. Orientação de comunicação alternativa para componentes do contexto familiar: uso de objetos, escrita na palma da mão utilizando o alfabeto romano caixa alta. A irmã fazia o registro da palavra e a aluna surdocega registrava na máquina braille o vocabulário. Fonte: Arquivo pessoal da professora-itinerante Fátima Cader-Nascimento (SEEDF, 2014)

Modelo de cartão tridimensional de identificação de ambiente, com registro no sistema Braille padrão, com a representação do Braille ampliado, alfabeto romano em caixa alta e contraste, sinal em LIBRAS, material icônico representado por um mini rolo de papel higiênico e por fim, a representação do ícone de mulher. O uso do geoplano, mediado pela guia-intérprete em sala de recurso. Arquivo pessoal Cader-Nascimento (2003)

As Figuras ilustram o processo de ensino na sala de recursos, desenvolvido pela guia-intérprete e o estudante surdocego. Verifica-se o uso da máquina modelo Perkins, o contato mão sobre mão, a proximidade necessária na execução do trabalho. A segunda mostra a atuação da itinerância no uso do Quadro Valor de Lugar, adaptado pela professora Maria Satico Yamanaka, professora aposentada do CEEDV.

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6 thoughts on “EXPERIÊNCIA NO ENSINO DE SURDOCEGOS NAS ESCOLAS PÚBLICAS DO DISTRITO FEDERAL
    1. Somos uma revista digital que trata sobre a inclusão escolar com ênfase nos trabalhos realizados em sala de recursos. Agradecemos o comentário e a segunda edição da revista está ainda mais interessante e será publicada em março de 2021.

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